Valdemar Munaro.
13.05.2020
Mais um ator idoso antecipou a própria morte. Chamava-se Flavio Migliaccio. Foi bom ator, por sinal. A velhice para muitos se tornou maldita. Até Lima Duarte mimou a morte do colega e exaltou sua coragem de matar-se. Esses homens são semelhantes à Tamargueira, uma planta do deserto, que muitas vezes é exuberante por fora e oca por dentro.
O velho Platão na sua República já dizia que a boa velhice depende muito mais da vida que se viveu do que daquilo que se faz dela no presente. Ou seja, é o modo como vivemos a nossa vida inteira até hoje o que torna a velhice bela e feliz. Não o contrário. A velhice, por sua vez, revela perfeitamente de que ‘material’ é feito o ser humano: contingência, fragilidade, ‘argila quebrável’, pequenez, corruptibilidade e mortalidade. Quem não levar a sério essa verdade, irá amaldiçoar a decadência física e a idade avançada.
O escritor latino, Cícero, ao falar da velhice, recomendava o suicídio quando alguém ficasse cego, surdo e incapaz de tudo. Muitos artistas se assemelham aos revolucionários: têm pressa de justiça, de purificação, de limpeza, de libertação. Como alguns discípulos de Jesus, anseiam por arrancar o joio antes do tempo e da colheita, ação que não nos cabe enquanto humanos. Todos os revolucionários são apressados e agressivos. Quando não acantonam ou não matam os outros, acantonam-se e matam-se a si mesmos.
Revolucionários não amam, só lutam. Querem antecipar o paraíso, quase sempre pela força, e, embora não se tenham dado a si mesmos e nem dado aos outros a própria vida, creem-se no direito de tirá-la. O suicídio é uma agressão não apenas a si, mas também aos outros. Os mortais que antecipam a própria morte não suportam a vida como ela nos foi dada nem como ela é.
Flávio Migliaccio, Lima Duarte e tutti quanti, artistas famosos e/ou de sucesso, tiveram seu tempo de glória, seus aplausos, sua fama, seu dinheiro…. Não era isso que desejavam quando entraram para o mundo do teatro e do cinema? O que mais queriam além daquele horizonte? Talvez pensassem em poder permanecer sempre na mesma glória, no mesmo lugar, sempre jovens, energéticos, ovacionados, admirados? Tiveram o que desejaram. O que mais almejavam?
A bem da verdade, foram pessoas que olharam muito o próprio umbigo, amaram o próprio ego, o seu mundo particular. No fundo não amaram outrem além de si, foram só amados. O Flávio pede para os que lerem a sua carta de despedida para que cuidem das crianças: de quais crianças ele está se referindo? Das do mundo inteiro? Das do Brasil? Das favelas? Para quem ele dirigiu essa súplica? Para os próprios familiares? Para os governantes? Para o papa? Para os irresponsáveis que geraram filhos e os abandonaram? E o Flávio, durante a vida, cuidou de alguma criança? Quais e quantas? Onde? Não sabemos. O que sei é que há muitíssimos pais que cuidam muito de suas crianças. Mas há os que vivem da lei: ‘o prazer é meu, o filho é teu’. Quem são os que não cuidam dos seus rebentos? Artistas que falam assim, genericamente, são exuberantes por fora, mas são ocos por dentro, não vivem em amores reais, mas abstratos, vazios. Acusam uma sociedade sem cabeça e sem mãos.
O suicídio é um soco de ingratidão no rosto da vida de quem o desfere e que lhe proporcionou oportunidades. Porque não têm a honestidade de dizer para si mesmos que viveram uma vida de merda, que só pensaram em si mesmos, muitos desses velhinhos são verdadeiros chorões mimados.
Lima Duarte imputa ao 1964 e aos anos adjacentes suas infelicidades pelos 90 anos vividos. Também Jean Jacques Rousseau (nascido em 1712), o pai do romanticismo ocidental e inspirador da Revolução Francesa, já no limite de sua existência, teve atitude parecida: atribuiu a desgraça e infelicidade da sua própria e idosa vida à sociedade elitista francesa (na qual viveu e da qual tirou proveito) que não o valorizava suficientemente. Para esse tipo de ego não há amor que baste. Conseguiram ser o que são com a ajuda dos outros, mas sempre será pouco o que se faz e o que se fez por eles. Querem conferir esse clássico lamento rousseauniano? Basta lermos as primeiras páginas de seu último escrito póstumo: “Devaneios de um caminhante solitário”. Até quando esse choro e esse lamento de muitos artistas e intelectuais vai durar? Tiveram o sucesso que queriam. Receberam o carinho e a atenção de milhares de pessoas, muitas delas totalmente desafortunadas, em situação muito pior que a deles e, no entanto, estão apegados a alguns furúnculos e agruras do passado. Sofrem ressentidos as dificuldades frequentes que todos os humanos comuns também padecem.
Os humanos ‘normais’ seguem em frente e não tem a chance de se lamentar porque normalmente não chegam nem sequer aos 80. Vivem, como afirma o estudioso canadense, Nortrop Frey, “uma vida irônica”, uma ‘narrativa imitativa baixa’. Sobrevivem sem nenhum amparo, exceto suas próprias forças e sua fé. O que mais esses artistas querem além do que queriam? Querem ser carregados no colo para que não sejam sujados e machucados seus pés? O que eles nos ensinam com suas lamúrias de terceira idade? Nada ou quase nada. Conseguiram quase tudo o que artistas de nosso país poderiam ter conseguido e mesmo assim resmungam. É o reflexo de uma vida interior oca, sem esperança, sem gratidão. São vítimas do seu próprio niilismo e ressentimento.
Alguns internautas choram e se comovem de pena ao vê-los assim decaídos, mas tais artistas são, na verdade, crianças mimadas: acham-se grandes nas coisas que lhes afaga o ego e pequenos nas coisas em que a grandeza da própria responsabilidade lhes exigiria honestidade nas lágrimas. Como perguntava Dante: ‘Tu, quando choras, de que coisa choras’? Tuas lágrimas são lágrimas de um puro injustiçado? Ou, porventura, também praticaste injustiças? Sempre tiveste o pão sobre a mesa, o aplauso dos palcos, o carinho do público. Quem estaria machucando a tua velhice? A Rede Globo? O governo? Ora, ora, sr… Lima Duarte! Onde estão as amizades que construíste, os amores que viveste, os afetos que alimentaste, as relações profundas que porventura estabeleceste? Ou não construíste nada de espiritual e humano ao teu redor? Se tens amigos e pessoas que te amam, por que choras? Por que te lamentas se tiveste uma existência privilegiada? Quem está ferindo tua dignidade ‘excelente’? Por que tua vida tão famosa e tão bonita se tornou uma bosta? E por que teus 90 anos têm mais valor e importância que a de outros milhares de idosos desse país? É ainda sintomático que ao final do vídeo que gravou homenageando o colega de teatro agora morto, Lima Duarte cita uma frase de Bertold Brecht, o intelectual servidor e defensor de Stalin que, embora nascido próximo a Munique, viveu convenientemente grande parte da sua vida na Alemanha Oriental, pois lá obtinha dinheiro e benesses infames que lhe chegavam dos saques perpetrados pelos regimes totalitários impostos pela União Soviética.
Brecht foi um intelectual que vendeu sua alma ao partido comunista soviético a quem serviu ignominiosamente durante seus últimos 30 anos. Mesmo sabendo de todos os crimes cometidos por aquele ditador assassino, Brecht permaneceu um homem fiel a ele, numa cômoda zona intelectual e psicológica fria e cruel. Por causa disso, nenhuma obra de teatro de Brecht deveria ser encenada. O historiador Paul Johnson o chamou de intelectual ‘coração de gelo’. Com efeito, a frase usada por Lima Duarte cabe bem, portanto, à própria autobiografia de quem a escreveu: ‘mãos lavadas no sangue’. Sangue de quem? Não o próprio, mas o sangue dos outros, evidentemente. Sem o sacrifício de muitos, Brecht não teria sido Brecht. Sem o apoio de todo aparato sanguinário comunista soviético, Brecht teria sido um zé ninguém. Foi apoiando o sangue derramado dos outros que Brecht viveu sua hipocrisia e sua vida de benesses. Até com a sua própria mãe, Brecht foi um ingrato e um cruel: depois do enterro levou amigos até sua casa para ‘encher a cara’ desprezando o sentimento dos demais irmãos. Ingratidão é um grande verme que medra a alma de muitos artistas e políticos, mas, sobremaneira, de revolucionários. Creem-se poderosos e semideuses, quando não o são. O homem não é Deus e a velhice e a morte juntas são a sua melhor fotografia.
Nossa sorte é que a morte nos atingirá a todos indistintamente. Por isso não é preciso morrer antes do tempo porque em hora incerta ela virá com certeza absoluta. É só viver bem e esperar. Morrer de velhice foi a mais bela invenção que a vida nos deu. Só Deus poderia tê-la criado.
Santa Maria, maio de 2020.
*O autor é professor de Filosofia na UFN em Santa Maria/RS