Ubiratan Iorio*
Vivemos tempos em que praticamente tudo em nossa vida é politizado. É sabido que esse fenômeno não é novo, pois começou há pouco mais de cem anos, mas vem se intensificando de maneira assustadora em nossos dias. Não é que eu defenda uma negação completa da política, irreal e imatura, somente penso que não é correto e chega a ser quimérico e infantil acreditar que ela tenha soluções para todos os nossos problemas e para os problemas ditos “sociais”.
Toda sociedade pode ser observada, segundo uma perspectiva de longa distância, como se estivéssemos bem no alto, na janela de um avião, olhando para baixo. Nesse caso, enxergaríamos os contornos de três grandes sistemas, exatamente os que compõem a sociedade, que são o sistema político, o econômico e o ético-moral-cultural. Veríamos, de longe, no sistema político, as relações políticas, as formas de governo e as instituições; na economia, os mercados e as instituições que estão por trás deles, as regulamentações, as fazendas e indústrias. Mas o terceiro sistema – o ético, moral e cultural – parece ser o mais complexo e escondido dos três e nem sempre se consegue visualizá-lo facilmente do alto.
Esse último sistema constitui-se de um permanente processo evolutivo (uma ordem espontânea, na nomenclatura de Hayek), abrangendo todas as manifestações religiosas, associativas, artísticas e culturais, como, por exemplo, o longo processo de desenvolvimento da nossa música popular, desde a época das modinhas e lundus até o samba primitivo, o frevo, o samba-canção, a bossa nova e a (péssima) música brasileira contemporânea, ou como no cinema e teatro, observando como eram os filmes e as peças antigamente e como são hoje. Na base disso tudo, durante séculos, existiu um sistema ético e moral tradicional, que – claro – deve se modernizar, mas que não pode ser abandonado, simplesmente porque aquilo que era moralmente errado no século II ou no século XII dC deve continuar sendo errado no século XXI. Assaltar uma pessoa era errado, no Império Romano, no Brasil imperial e é errado em qualquer época e lugar. Onde estou querendo chegar? O que quero dizer com isso? Ora, simplesmente, que cada um dos três sistemas tem a sua maneira de funcionar, tem as suas leis, tem as suas características que os levam a operar independentemente, mas ao mesmo tempo, existe uma interdependência muito forte entre eles. E quero enfatizar que para que uma sociedade seja sadia os sistemas político e econômico precisam necessariamente subordinar-se às regras de boa ética e moral.
Ora, um ato econômico qualquer, ou um ato político pode ser moralmente correto, errado ou neutro. O que aconteceu durante todo o século XX e continua acontecendo até hoje é um fenômeno analisado de maneira magistral pelo historiador britânico Paul Johnson, em seu famoso livro Tempos Modernos, em que nos relata a história do mundo dos anos 20 até os anos 90 do século XX. Aconselho especialmente a leitura do primeiro capítulo, que resumo: porque nós podemos chamar o século XX de “século esquisito”, de tempos estranhos? Simplesmente, segundo Johnson, porque o sistema político, que antes tratava só de temas da política, passou a invadir tanto o sistema econômico quanto o sistema ético, moral e cultural. Isso se deu pelo processo de relativização moral crescente que foi acontecendo a partir da segunda metade do século XIX, em que foi sendo paulatinamente derrubada a barreira, que sempre foi bastante clara e incontestável, que separa, na tradição judaico-cristã ocidental, o certo do errado. O que era certo era certo, o que era errado era errado e ponto final, todos aceitavam. E essa relativização passou a considerar, como o próprio nome está dizendo, que o certo e o errado são “relativos”. Assim, um ato qualquer, praticado em uma dada circunstância, seria errado, mas sob outra circunstância seria certo.
Por causa disso, as pessoas passaram a acreditar cada vez mais em soluções políticas. E o sistema político arrombou a porta e invadiu tanto o sistema econômico como o sistema ético, moral e cultural. Problemas econômicos, que antes eram solucionados no próprio sistema econômico, como por exemplo, salários, passaram a ser objeto de decisões políticas, com as leis estabelecendo salários mínimos. No plano da ética, moral e cultura, a mesma coisa: decisões de cunho pessoal, íntimo, como por exemplo, questões referentes ao aborto e ao homossexualismo, que eram tratadas no plano individual mediante considerações éticas, passaram a ser politizadas. E, de uns anos para cá, essa politização cresceu de uma maneira insuportável, a ponto de fazer o mundo de hoje parecer-se com um hospício. A verdade é que esse processo de politizar tudo já passou de todos os limites aceitáveis e toleráveis e já mostrou à sobeja ser um equívoco mortífero, fatal, funesto, nefando.
O grande erro, é que, ao valorizar cada vez mais essas ditas “soluções políticas”, as pessoas foram se esquecendo, cada vez mais, de que existem soluções econômicas para problemas econômicos que necessariamente são as melhores: são as leis da economia. E de que existe um desenvolvimento evolutivo, um processo natural de alterações lentas, de usos, costumes, linguagens e de hábitos que, muito mais do que qualquer solução política, leva nem vou dizer ao equilíbrio, mas às melhores soluções para a cultura. Em suma, ao dar uma autoridade ilegítima, ao conceder vênia a uma crença exagerada em soluções políticas, o grande erro foi o de abandonar, muitas vezes integralmente, as soluções econômicas e as soluções do próprio sistema ético, moral e cultural.
É preciso mudar isso. Para problemas econômicos, soluções econômicas; para problemas políticos, soluções políticas e para questões de natureza intima, ética, moral e cultural, retornar ao que já existe há séculos e que sempre funcionou bem, que é a tradição judaico-cristã.
As pessoas de bem precisam refletir sobre isso, antes que seja tarde demais.
* O autor é doutor em Economia pela FGV
** Publicado originalmente em ubirataniorio.org, em 02 de março de 2021