GAIOLA ABERTA

“A prisão é a segurança, as barras,
o apoio para as mãos. Então reconheço
que a liberdade é para poucos”.
Clarice Lispector

MARIA DA GLÓRIA SÁ ROSA

As portas da gaiola azul estavam sempre abertas, mas nenhum de seus pássaros tentava escapar. Há longos anos ali estavam eles, saltitantes, alegres, presos por livre vontade, no espaço da aventura do consumo de imagens, que preenchiam as carências de cada um. Viviam de signos, de fantasias, construídas em anos de rebeldia, de liberdade simulada. Carolyn, por exemplo, mergulhava nos simulacros dos atores e atrizes de cinema com quem se identificava.

– Vocês sabiam que Burt Lancaster era gay? Eu sempre desconfiei que, por detrás daquele jeitão másculo, morava o indivíduo delicado que procura no mesmo sexo o que a mulher não conseguiu lhe oferecer. E olhe que era casado e tinha cinco filhos. Bem, Norma, a mulher de quem nunca se separou, era uma alcoólatra, mas isso não quer dizer nada para quem trazia latente o gosto do prazer proibido. Tentou viver sempre dentro do armário, como Tyrone Power e Errol Flynn.

 Por isso, meu ídolo é, foi e será Clark Gable, um autêntico macho, um homem no sentido total do termo, um vencedor que nunca se rendeu às mentiras de Hollywood. Hoje não posso perder na TV a cabo “Os desajustados”, com meu herói. Marilyn Monroe e Montgomery Clift, outro grande ator, também adepto do amor que não ousa dizer o nome. Foi o último filme de Gable. Depois teve um infarto, causado, segundo alguns, pelos atrasos de Marilyn, nas filmagens, no deserto de Nevada.  Meu filme favorito é “E o Vento Levou” com outro de meus ídolos,

Vivien Leigh, beleza e inteligência concentradas num dos rostos mais perfeitos do mundo, que a loucura devastou. Você sabia que ela quase destruiu a vida de Lawrence Olivier, com as crises nervosas de psicose maníaco-depressiva, em que tinha casos com outros atores, como Peter Finch?

– Carolyn, você é uma enciclopédia cinematográfica. Que cultura…

– Desde menina, o cinema foi minha grande paixão. Tinha dezenas de álbuns, que minha mãe insistia em esconder, em queimar, com medo de que prejudicassem meus estudos. Depois foi a implicância do marido, que sempre tentou bloquear meus sonhos, porque dizia que eles me afastavam da realidade, da casa e dos filhos. Que engano! Sua tirania só fazia crescer meu gosto pelos filmes, minha adoração por esses heróis, que são parte de minha vida.

Agora, que ele se foi, posso dedicar cada momento de minha vida ao prazer de ver filmes e acima de tudo de penetrar nos insondáveis mistérios da vida de meus astros favoritos. Enquanto falava, os olhos de Carolyn cintilavam, na delícia de mastigar seu assunto predileto. Desaparecera a velhinha de mais de setenta anos, para dar lugar à menina de sapatinhos vermelhos, cabelo separado em dois cachos, como Judy Garland, no “Mágico de Oz”. Carolyn ultrapassara as paredes do asilo para caminhar no tapete macio de um mundo criado por ela mesma, onde a cor cinza do cotidiano tinha sido substituída por um cenário de palavras que lhe permitia vislumbrar o olho azul da felicidade.

Carolyn sabia que Ângela a compreendia, porque fora estrela de cinema e de teatro e hoje seus dias eram passados na expectativa da chegada do grande diretor, que viria convidá-la para o filme que marcaria seu triunfal retomo ao palco. Todas as manhãs, Ângela cobria-se de maquilagem barata, vestia-se de organdi e rendas e punha-se perto do telefone, na espera angus-tiante de uma chamada. Pensava que todos tinham consciência do prestígio de seu nome, sabia que era uma lenda, que merecia respeito pelo muito que fizera a favor da arte. À noite, juntava as amigas para repetir o monólogo de Ofélia ou os poemas de Florbela Espanca, com quem se identificava. Sentia-se ainda a grande dama que nascera para brilhar.

As amigas da gaiola dourada eram seu palco, o tédio de estar morta após o rolar dos redemoinhos da vida não fazia parte de seu repertório.

O maior dos pássaros era Carlota “a mais famosa educadora do Estado-, slogan que um dos seus alunos criara para um jornal, que ela trazia guardado, como ícone de celebração de suas vitórias. A mestra, que ensinara a gerações, que tivera entre seus alunos até um presidente da república, vivia de lembranças, escrevendo as memórias em cadernos grossos, que eram sempre substituídos por outros, tantos os acontecimentos que, segundo ela, precisavam ser contados para servir de exemplo aos professores de hoje, que não conheceram sua dedicação, sua paixão pela sala de aula, seu gosto de ensinar. Repetia com frequência: ensinei meus alunos não apenas a construir símbolos, mas a preparar-se para enfrentar as tormentas do cotidiano.

Na gaiola dourada, sentia-se realizada como educadora e agora como escritora. Sabia do impacto que seu livro ia causar, e isso a deixava em permanente alvoroço interior.

A novidade quebrou a tranquilidade aparente da gaiola dourada. Uma carta anunciava a visita de Antônia Carvalhaes, o que reacendeu na alma de todas a nostalgia de um espaço que haviam deixado para trás e do qual não pareciam sentir falta. Meu Deus! A personificação das virtudes, por quem suspiravam os homens e morriam de inveja as mulheres., decidira visitar a irmã, prisioneira por sua própria vontade numa gaiola dourada. Como estaria ela, por quem todos suspiravam, copiavam os gestos, elogiavam a elegância, o luxo da riqueza fácil?

Não se falava noutra coisa. Os pássaros suspenderam a respiração, o infinito concentrava-se numa mulher que soubera resistir ao tempo, que ainda hoje, à custa dos milagres da plástica conservava a beleza da juventude, a lucidez da mente privilegiada.

Os corações bateram descompassados, quando soou a campainha. E ali estava ela, a grande Antônia, filtrada pelo olhar de velhos pássaros que pensavam em abrir as portas da gaiola e seguir a sombra de uma deusa que desafiava o mundo com o poder da inteligência, o carisma da sensibilidade. Carolyn sabia que iria reencontrar em Antônia Carvalhaes a própria Scarlett O’Hara,

depois da destruição de Tara, cabelos ao vento, na promessa do recomeço próprio das mulheres de fibra.

Ângela recordava o monólogo de Ofélia, que declamaria para impressioná-la. Certamente, seria convidada por Antônia para integrar o elenco de sua última peça e precisava ter o material preparado. Carlota separou os melhores textos de sua autobiografia, que dedicara a Antônia, certa de que iria contar com a ajuda dela na publicação.

 

– Essa ruína é Antônia Carvalhaes?

– Meu Deus como envelheceu!

– Como olha estranha para cada uma de nós! Parece não reconhecer ninguém…

Ninguém até hoje soube o que Antônia Carvalhaes viera fazer na gaiola dourada. Uns dizem que, atingida por demência, decidira conhecer o ambiente, para se transformar em mais um dos pássaros do estranho viveiro.

Outras comentaram que, penalizada com a situação da irmã, viera doar uma soma para a manutenção da gaiola.

Como chegou, partiu, deixando a dúvida no ar. As portas da gaiola continuam abertas. Nenhum pássaro quis abandoná-la. Ali conquistaram a liberdade, que a ilusão concede a seus eleitos. Ali queriam viver para sempre.

O que mantém um homem vivo, pergunta Bretch? Só Carolyn, Ângela e Carlota, aferradas à segurança das barras, podem dizer.

 

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