CRISTIANISMO E LIBERDADE.

FAMÍLIA E RELIGIÃO

 12 maio 2018

Por Catarina Rochamonte,
publicado pelo Instituto Liberal

Entre os cristãos há muitas teses contraditórias no que tange à política e não nos cabe aqui apontar caminhos definitivos, senão estabelecer alguns pontos do debate público no qual acabamos tomando parte.

Já escrevemos alhures acerca da incompatibilidade entre a visão de mundo dita hoje “progressista “e a visão de mundo cristã. Ainda voltaremos a isso, mas trataremos aqui de balizar nossos pontos divergentes em relação a um nicho intelectual que, assim como nós, também se opõe às forças políticas ditas progressistas.

Referimo-nos aos tradicionalistas antiliberais que se, por um lado, combatem conosco o autoritarismo, a demagogia e o relaxamento moral da esquerda, por outro lado acusam-nos de compartilhar com essa mesma esquerda um certo DNA revolucionário e utópico, por acreditarmos, de algum modo, no progresso do ser humano. Referem-se eles às “revoluções liberais” criticando nelas não apenas os aspectos de violência e ruptura abrupta que muitos de nós também condenamos, mas lamentando principalmente a insubordinação da coroa temporal em relação à papal. Veem, pois, como maléfica a emancipação dos governos temporais em relação à autoridade espiritual de Roma e com isso rejeitam os aspectos positivos da modernidade, negando que tenha havido naquele período reais conquistas e efetivos progressos.

Com todo respeito a essas pessoas com as quais temos alguns importantes pontos em comum, ponderamos que crer no progresso não é ser revolucionário. Revolucionários querem fazer “progredir” à força e por meio de modificações radicais na estrutura social. Pessoas sensatas compreendem que a sociedade e o ser humano “progridem” ou “evoluem” sim, de modo gradativo e lento. Justamente por sermos livres, falhos e limitados vamos a passo de tartaruga, entre paradas de recrudescimento moral e intelectual, entre desvios do caminho e da verdade, mas vamos. Negar isso nos parece obscurantismo.

Está claro que quando criticamos os “progressistas” o fazemos pela compreensão de que se trata aí de uma concepção reducionista e equivocada do ser humano. Um “progresso” que se expressa pela dissolução moral, pela apologia aos vícios, pela possibilidade de se poder decidir utilitariamente, por exemplo, acerca da vida de fetos – que são por um lado chamados de amontoado de células e por outro lado chamados de “autopropriedade” (feministas libertárias) –  isso, dizíamos, não é um progresso real. Constatar isso não significa, porém, que progresso não exista e aqui nos parece que o papel de um conservador não reacionário poderia ser o de lançar luz sobre os verdadeiros valores que precisam ser resgatados e preservados para que haja um progresso real ao invés de simplesmente afirmar apressada e equivocadamente que quem acredita no progresso da natureza humana é revolucionário.

Temos hoje, pois, tanto no oriente quanto no ocidente, narrativas que renegam o progresso. Pensam os islâmicos – estagnados que estão em seu próprio desenvolvimento – que o ocidente se perdeu no pecado e na luxúria. Pensam muitos tradicionalistas ocidentais – obcecados pela Idade Média – que isso foi culpa do secularismo da modernidade. Renegam assim o progresso individual e institucional que se deu por meio da evolução secular das ideias; negam valor à era das luzes, à Renascença, ao Humanismo; negam importância aos desdobramentos de um ideal de humanidade assegurado pelos aspectos legais de nossas instituições porque negam a importância da racionalidade recuperada e reintegrada no caminho secular do progresso e das leis.

Concordamos que há um déficit moral no mundo contemporâneo, mas pensamos também que não adianta tentar restaurar alicerces carcomidos de teses teológicas abstratas a fim de salvaguardar a espiritualidade que se esvai. A espiritualidade, na nossa modesta compreensão, precisaria ser reconquistada gradualmente no âmbito interno de cada um. O indivíduo é incontornável em qualquer progresso social verdadeiro e é por isso que, a despeito de valorizarmos sobremaneira a tradição, não nos dizemos simplesmente tradicionalistas ou conservadores sem acompanharmos tais palavras de certas ressalvas. Se queremos conservar o que é bom, conservaremos também a individualidade e sua integridade.

O sujeito como ponto de virada na modernidade não significa necessariamente uma perda ou um distanciamento de Deus – como os tradicionalistas querem fazer crer – mas pode representar uma outra forma de encontra-lo. Os conservadores que pretendem desviar o olhar do sujeito, do eu e daquilo que lhe é cabível em termos de extensão política acabam se encaminhando para teses dogmáticas e sem relevância para a transformação moral do indivíduo; transformação essa que o próprio progresso social real pressupõe.

Algo relacionado a esse debate foi publicado recentemente pelo jornalista Lucas Berlanza, no artigo intitulado “Nem comunismo, nem Sharia, nem Estado católico.” Nesse artigo, publicado pelo Instituto Liberal, Lucas trouxe à tona a polêmica em torno da defesa, por parte de alguns grupos tradicionalistas, do reestabelecimento de uma religião oficial do Estado, no caso a religião católica. Essa tentativa de restabelecer princípios de configuração religiosa em uma constituição que já se consolidou como sendo de teor mais liberal e secular é bastante problemática.

Como acreditamos haver de fato uma relação intrínseca entre as conquistas políticas do ocidente e o cristianismo é necessário muita cautela e atenção no trato com tais questões, pois afirmar o caráter saudável do influxo cristão sobre as leis não equivale a presumir que a lei deva se subordinar aos dogmas impostos por uma dada religião. A proposta de uma supremacia religiosa oficial na forma de um Estado Católico tem sido apregoada por distintos teólogos e professores adeptos de uma filosofia (tomismo), mas tal proposta não nos parece fazer jus ao desenvolvimento das ideias dentro da própria Igreja.

O Estado Laico foi gestado e elaborado a partir de matrizes cristãs em um momento em que já não fazia sentido insistir em uma religião oficial; a separação entre Estado e Igreja encontrou seus precursores no próprio pensamento católico, tendo sido um progresso dentro da história do cristianismo e, consequentemente, do ocidente. Poderíamos citar Gulherme de Ockham, filósofo e teólogo que dedicou boa parte do seu exercício intelectual a combater a teocracia papal, poderíamos citar Santo Agostinho com a sua distinção entre Cidade de Deus e Cidade dos homens, poderíamos citar inúmeros outros filósofos e teólogos cujas reflexões apontam justamente para o contrário de uma ordem política concebida em moldes religiosos e dogmáticos. Poderíamos citar muitos e até o próprio São Tomás de Aquino cujo pensamento tem sido injustificadamente instrumentalizado por esses grupos fanáticos e extremistas, pois não é fato que o tomismo possa legitimamente prestar-se a isso. Poderíamos citar muitos, mas citaremos apenas as imortais palavras do próprio Cristo ao afirmar “Meu reino não é desse mundo” ou ainda “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.

Guardado esse sentido da questão e guardadas sobretudo essas palavras do Cristo, seria até possível afirmar que entre um Estado laico baseado em princípios cristãos e um Estado autoproclamado cristão não haveria nenhuma diferença efetiva já que a laicização do Estado foi inerente ao desenvolvimento social consubstanciado a partir da doutrina cristã, que defende uma história paradigmática que em nada tangencia a história secular no sentido de que sabe ser impossível a salvação a partir da pura imanência e, por isso mesmo, impossível a efetuação no mundo de uma sociedade absolutamente justa, uma vez que a justiça só se realiza através da transcendência que invade a imanência no coração do homem, como já o provou Sócrates a partir de sua condenação pelo Estado e como já testemunhou Jesus com a sua crucificação.

A relação que tentamos expressar com o título desse artigo ao juntarmos as palavras “cristianismo” e “liberdade” deve-se ao fato de que a proposta política que atualmente nos parece mais compatível e condigna a quem se diz cristão é a proposta que possibilita a construção social a partir da construção de si, ou seja, aquela que visa a aprimorar os sistemas políticos de modo a que juridicamente os sujeitos estejam cada vez mais livres naquilo que lhes compete enquanto indivíduos e enquanto cidadãos. Tais indivíduos poderiam, por exemplo, promover projetos de assistência mútua a partir de suas próprias propensões – se propensões para isso houver.

O progresso, da forma como está sendo imposto hoje pelas pautas da esquerda, acaba traduzindo-se no seu inverso. Colher, por exemplo, direitos para as minorias sem atinar para a relevância jurídica do indivíduo ou favorecer políticas que visem a grupos específicos e não a uma especificação maior de uma lei que proteja o indivíduo, isso não é progredir, é assumir a prática socialista por delegação de favores e cotas. A democracia, tal como a entendemos é limitação de poder e não delegação de favores infinitos do Estado a grupos que se digladiam com o restante da sociedade. Ou se compreende a democracia por seu viés liberal e não populista ou nos encaminharemos para o globalismo homogeneizante contra o qual algumas vozes já têm se erguido. E a democracia, sob esse viés liberal, é para nós inegociável. Não a negociamos com os socialistas, mas também não a negociamos com conservadores reacionários que almejam subordinar a legislação e a ordem social aos dogmas da Igreja.

Decerto que a  política de uma era deve refletir a trajetória moral do povo que a constitui e se ela assim o fizer efetivamente ao invés de se perder em desvarios teóricos fora do eixo norteador central que nos mantém em equilíbrio, ela se pautará pela institucionalização de regras e leis justas e pautará o bem comum segundo normas já bastante conhecidas –  embora distorcidas – o que significa dizer que se houver uma política eficaz que tenha sido estabelecida como o resultado natural da real trajetória existencial de um povo, essa política jamais se pautará por princípios alheios àquilo que o cristianismo já propôs.

Se aceitarmos a imanência humana como definitiva, a perspectiva política tenderá para o lado da destruição e da dissolução porque refletirá a própria desorganização moral do coração humano e se aceitarmos a transcendência como algo que nos norteia trataremos a imanência como um seu reflexo e, sendo assim, não haverá como possibilitar ao político uma ingerência maior sobre o indivíduo do que aquela que abre a ele a possibilidade de pôr-se a si mesmo na abertura plena da moral já efetuada pelo cristianismo, dando àqueles que pretendam continuar no recrudescimento a chance de dele sair pelo desenvolvimento de sua consciência, respeitando a sua experiência, desde que essa não seja incompatível com a ideia de possibilitar aos outros a busca de seu próprio florescimento moral.

Assim, entre os que aceitamos o Cristo e que albergamos esperanças de um bom ordenamento político parece não haver espaço para os que pretendem impor regras arbitrárias de conduta e bons costumes, pois tais regras, em sendo impostas, ferem aquilo que todo cristão sabe ser inerente ao próprio valor de sua moralidade, a liberdade.

É fato que o secularismo jamais responderá por uma redenção completa e por uma justiça consumada e, por isso mesmo, há uma óbvia impossibilidade de reunir teórica e praticamente uma doutrina de índole materialista como o marxismo com a visão de mundo cristã, muito embora isso passe por possível entre aqueles que desconhecem ou desprezam a história real da humanidade em sua relação efetiva com a transcendência, mas é por isso também que a própria condenação do secularismo não se sustenta como fundamento da crítica que os tradicionalistas fazem aos liberais, pois liberal algum busca na autossuficiência do Estado o preenchimento para a lacuna moral deixada pela diminuição do poder da Igreja. Aquilo para o que se voltam é para si mesmo, para sua própria razão e busca de felicidade. Que se admita que essa felicidade não será jamais alcançada sem Deus, ainda assim isso nada tem a ver com política e política alguma poderá induzir ao florescimento espiritual do indivíduo

Se é verdade que o secularismo conquistado pelas revoluções ditas liberais trouxe consigo a exortação bélica dos revolucionários, ele trouxe também consigo a dignificação humana pelo esforço de iluminar as questões de ordem temporal pelo olhar reflexivo e não pelos dogmas. O dogmatismo em nenhum momento fomentou ou favoreceu o progresso. O espiritual sim. Mas o espiritual é algo muito maior do que aquilo que cabe no credo da Igreja Católica Apostólica Romana (à qual todos devemos muito respeito). Questionamos, pois, a tese mais difundida entre os tradicionalistas de que o secularismo lançou o homem às trevas morais. Não é verdade. Ainda que as trevas morais venham da distância entre o homem e o criador, o secularismo nada tem a ver com isso. Tratar questões temporais com ordens papais ou tratar dilemas éticos com dogmas e superstições não contribui em nada para o alavancamento moral da humanidade.

O secularismo, ou o Estado laico, representa um momento incontornável da história do próprio ocidente. Se hoje nos distanciamos de regimes teocráticos em cujo seio vigoram as maiores barbaridades de que temos notícia é porque nosso estamento secular assim o permitiu.  A partir do momento em que o Estado passa a ocupar-se de leis e não de moralidade humana, o indivíduo moralmente comprometido precisa valer-se de Deus intimamente e resolver-se com a lei externamente. O intermediário entre a consciência pecadora e Deus é ela mesma e não um padre ao qual se deva dar explicações ou fazer confissões.

A intervenção papal nos assuntos hodiernos da justiça tornaria improvável o progresso das leis, pois estas se constituem com a experiência, com as tentativas e erros humanos a propósito de seus caminhos. Não adianta, pois, um Estado teocrático dizendo o que é moral se o indivíduo por si mesmo não alcançar esse patamar espiritual. Toda autoridade que vise impor à força o desenvolvimento moral do homem estará fadada ao fracasso; portanto, há que se lutar sim para que as leis façam jus aos desígnios eternos do criador e ao ideal máximo de justiça, mas há que se compreender também que o mistério dos seus desígnios quis que a humanidade tateasse lentamente esses caminhos sem que a mão Dele pesasse sobre os homens na forma de um império teocrático santo e sublime.

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