Cesar Alberto Ranquetat Júnior[1]
28 de junho de 2016
Quando tratamos sobre a laicidade estamos lidando com a espinhosa e disputada questão acerca das relações entre Estado e religião, assim como a respeito do lugar e do papel da religião em uma sociedade.
Uma primeira observação a ser feita é a seguinte: não há um único modelo e padrão nas relações entre Estado e religião na atualidade. Múltiplos e variados são os arranjos entre Estado e organizações religiosas. Há, grosso modo, o conhecido modelo francês da laïcité caracterizado pela rígida separação entre Estado e religião, o modelo de religiões oficiais e estabelecidas presente em boa parte dos países da Europa protestante e ortodoxa e o modelo de separação formal entre o poder público e a religião existente nos países de tradição católica. Podemos, ainda, acrescentar dois outros arranjos; o modelo de Estado teocrático, cujas principais características são o controle do aparelho estatal por uma elite sacerdotal e a confecção de normas jurídicas e legais baseadas em uma específica tradição religiosa, como, sob determinado aspecto, ocorre na República Islâmica do Irã. E o modelo que foi implantado em países comunistas, como por exemplo, na antiga URSS, de Estados oficialmente ateus e, desta forma, antirreligiosos.
Uma segunda observação diz respeito a um mais apropriado entendimento do princípio da laicidade estatal. Neste ponto a ampla literatura sociológica, antropológica, historiográfica, politológica afirma que o Estado laico não é um Estado hostil ao fenômeno religioso. Não se trata de um Estado completamente imune à influência da religião, mas apenas não vinculado a uma confissão religiosa em particular. É um Estado não clerical, não confessional, que busca tratar com isonomia todos os grupos religiosos, garantindo a liberdade de consciência, a liberdade de crença e a liberdade de expressão da crença religiosa. Deste modo, o Estado laico não é um Estado ateu ou indiferente ao religioso. É uma forma de organização estatal, política e jurídica que, embora, não relacionada diretamente a uma confissão religiosa, reconhece a dimensão pública da religião. Este modo de “separação flexível”, que vigora em boa parte dos países europeus, não reduz o religioso à mera intimidade das consciências, fazendo da religião assunto privado, mas entende que as religiões, todas elas, podem se beneficiar, simbólica e financeiramente, do apoio do poder público, conforme afirma o cientista político Philippe Portier. Sintetizando, laicidade não significa a exclusão total da religião do espaço público. Em contraste com a laicidade temos o laicismo, uma forma agressiva e anti-religiosa de organização estatal e social. O laicismo é uma forma de religião política, que objetiva substituir os valores, símbolos e ritos religiosos por uma nova simbologia cívica e secular.
A terceira observação a ser feita refere-se ao equivocado argumento defendido por certos atores secularistas de que a religião torna-se um fator perturbador e problemático quando adentra o espaço público; ou seja, quando participa ativamente e influencia nos debates políticos, jurídicos e morais. Para os secularistas, a religião deveria restringir-se, em uma sociedade democrática e completamente laicizada, unicamente à esfera privada. Ocorre que, ao contrário do que argumentam estes atores, a religião não é em si mesma problemática para a democracia. De acordo com o sociólogo José Casanova, um dos mais prestigiados estudiosos da temática aqui tratada, tomar como pressuposto que a democracia deva ser secular é que é problemático, é este tipo de afirmação que tende a fazer da religião um problema. A existência de uma organização societal e de um aparato jurídico e político fortemente secularizado, não é uma condição necessária e suficiente para a democracia. De acordo com Casanova, às vezes encontramos regimes democráticos em sociedades não seculares onde a influência e a vitalidade da religião nas diversas esferas sociais são significativas, como é o caso dos Estados Unidos. Além disso, existem democracias com Estados vinculados formalmente a uma religião, como é o caso do anglicanismo na Inglaterra e do protestantismo luterano nos países nórdicos. Por outro lado, muito frequentemente presencia-se sociedades amplamente secularizadas, com Estados laicistas, mas sem regimes democráticos, como foi o caso dos países comunistas no leste europeu e da Turquia de Mustafa Kemal Atatürk na década de 1920.
Além disso, cabe observar que os mais terríveis e sangrentos conflitos do século XX foram produtos de ideologias políticas seculares nascidas na modernidade, como o nazismo alemão, o comunismo soviético, o maoísmo chinês, o republicanismo na Espanha na década de 1930, para ficarmos somente em alguns exemplos. Sendo assim, há também uma intolerância e violência secularista. O secularismo e a laicidade não são garantias de sociedades democráticas, pacíficas e liberais. Por sua vez, a participação e atuação de atores e discursos religiosos no espaço público, bem como a relação de proximidade entre Estado e grupos religiosos não significa, necessariamente, autoritarismo, anacronismo e passionalidade irracional. As tradições religiosas não detêm o monopólio da violência e não são intrinsecamente intolerantes e repressivas, pelo contrário.
No que tange especificamente ao caso brasileiro sublinho que do ponto de vista estritamente jurídico e constitucional, o modelo de laicidade adotado pelo Estado brasileiro é de uma laicidade positiva ou de reconhecimento, que não exclui por completo o religioso da esfera pública, reconhecendo na dimensão religiosa um aspecto importante na formação do cidadão. Apesar da Carta Magna de 1988 estabelecer a separação entre Estado e religião e a consequente liberdade de crença, há outros dispositivos constitucionais e leis federais que asseguram a presença da religião no espaço público, como aquele que diz respeito ao ensino religioso nas escolas públicas. Acrescenta-se a isto a invocação do nome de Deus no preâmbulo da Constituição Federal de 1988 e a possibilidade de assistência religiosa nas organizações civis e militares de internação coletiva. Desse modo, o religioso não é tratado com indiferença ou hostilidade, mas, pelo contrário, é concebido como um valor positivo. Nosso modelo de laicidade não apresenta um conteúdo contrário e de oposição às crenças religiosas, pois não impede a colaboração com as confissões religiosas para o interesse público (CF, art. 19, I). Além disso, acolhe expressamente medidas de ação conjunta dos Poderes Públicos com organizações religiosas, reconhecendo como oficiais determinados atos praticados no âmbito dos cultos religiosos, como, por exemplo, o caso da extensão de efeitos civis do casamento religioso.
Como conclusão deste artigo é indispensável algumas reflexões sobre o lamentável episódio ocorrido em 27 de julho de 2013 no Rio de Janeiro, em plena realização do multitudinário evento católico da Jornada Mundial da Juventude, quando alguns integrantes da chamada “Marcha das Vadias”, em um infeliz momento de vandalismo ensandecido, escarneceram, ultrajaram e injuriaram símbolos cristãos. Este episódio é ilustrativo, pois evidencia a faceta radical e intolerante de certos setores secularistas. Na verdade estes atos de iconoclastia e hagiofobia anticristã revelam que, em muitos casos, a defesa contumaz e agressiva de um Estado laicista, não se cinge unicamente na instauração de uma ordem política e jurídica neutral em matéria religiosa. Mas, na verdade, tenciona uma profunda mutação dos valores culturais de uma determinada sociedade. O laicismo antirreligioso e anticristão ancora-se num projeto metapolítico abrangente, numa determinada visão do homem e do mundo. Sendo assim, não visa apenas distinguir e separar os assuntos religiosos dos assuntos temporais, mas procura de maneira tenaz e calculada eliminar, extirpar e derruir por completo qualquer presença de símbolos e valores religiosos existentes em dada sociedade. Como já alertava o renomado filósofo Norberto Bobbio: “[…] o laicismo que necessita armar-se e organizar-se corre o risco de converter-se numa igreja enfrentado as demais igrejas”.
[1] Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Professor de Ciências Humanas na Universidade Federal do Pampa – Campus Itaqui.