O pensamento de Gudin

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Gudin posicionou-se com desenvoltura sobre todas as grandes questões de economia política brasileira, problematizando-as com coerência e vivacidade. A seus textos, escritos quase sempre em linguagem acessível mesmo para leigos em Economia, voltavam-se não apenas os políticos e economistas conservadores em busca de argumentos que norteassem seus posicionamentos, mas também a intelectualidade desenvolvimentista. Esta se via continuamente impelida à obrigação do exercício de crítica às análises de Gudin, não só pela importância prática que tinham essas análises, de ampla divulgação pública, mas também pelo conhecimento da firmeza e coerência da sua linha de argumentação. Diante da segurança com que divulgava os postulados neoliberais, é difícil imaginar que o debate sobre desenvolvimento econômico ficasse mais ou menos balanceado, como ficou, não fosse a riqueza da interpretação antiliberal inspirada em Prebisch e nos textos da CEPAL de um modo geral.

Gudin foi um típico economista neoliberal, levado a reinterpretar os grandes enunciados das teorias liberais à luz da problemática econômica revelada pela depressão cíclica do período entre as duas Grandes Guerras. Fez um esforço de recuperação do princípio fundamental da economia clássica, isto é, uma defesa qualificada do princípio da não-intervenção estatal na economia, através de uma rica problematização analítica de sua aplicação ao caso dos países subdesenvolvidos. Na sua busca, identificou-se profundamente com o pensamento de Jacob Viner e Gott Fried Haberler, dois dos maiores livre-cambistas de sua época, com os quais nutriu inclusive amizade pessoal.

Como se sabe, os livros desses dois economistas são considerados grandes obras de reavaliação e sustentação do princípio clássico da divisão internacional do trabalho. Seus autores procuram preservá-lo, levando em conta a existência de ciclos econômicos e procedendo a uma discussão sistemática da validade do livre-cambismo frente a argumentos protecionistas. Gudin encontrou nessas obras o suporte teórico ideal para seu posicionamento em relação à questão central do debate desenvolvimentista dos anos 40 e 50  isto é, das políticas econômicas de apoio à industrialização. Mas não era um mero repetidor de argumentos. Longe disso, foi sobretudo nessa área analítica que exibiu sua criatividade. Viner e Haberler escreveram com a atenção voltada essencialmente para as economias desenvolvidas, a não ser em fase mais adiantada, já no início dos anos 50, e inclusive sob o estímulo do próprio Gudin (2). Este, por sua vez, teve a originalidade de repensar o livre-cambismo pela ótica especial dos países subdesenvolvidos. Dificilmente outro economista liberal de países atrasados terá feito, em plena década de 40, um esforço tão consistente como o de Gudin para readaptar os postulados clássicos às economias subdesenvolvidas, ou “reflexas”, se quisermos empregar o termo cunhado pelo próprio autor.

O resultado desse esforço intelectual foi que, ao invés de uma recusa pura e simples da idéia da industrialização brasileira, em nome de um livre-cambismo puro e ultrapassado, Gudin tinha a respeito uma visão sofisticada e atualizada. Roberto Campos afirmou certa vez que o estruturalismo é uma espécie de contraponto intelectual do keynesianismo na América Latina. Talvez não seja exagero afirmar, analogamente, que Gudin proporcionou uma espécie de contraponto intelectual do neoliberalismo na América Latina, ou, mais especificamente, no Brasil. Sistematizou os argumentos liberais, levando em conta uma série de características específicas das economias subdesenvolvidas, e problematizando o liberalismo como procedimento para sua preservação em economias atrasadas.

A hipótese central de sua argumentação é a da existência de pleno-emprego na economia brasileira. Era este um ponto indispensável à consistência de suas formulações. Tinha Gudin plena consciência disto  e total convicção da existência do pleno-emprego. Poucos são seus textos mais importantes sobre a economia brasileira em que não repetiu enfaticamente a idéia de que a mesma sofre de baixa produtividade e de “hiperemprego”  e não, como diziam os desenvolvimentistas, de desemprego.

Esse foi também o argumento que lhe permitiu compatibilizar uma interpretação dos fenômenos monetários que evitou a polêmica teórica keynesianismo versus monetarismo, com uma posição resolutamente antiestruturalista e próxima das políticas ortodoxas preconizadas pelo FMI. Seu livro-texto, Princípios de economia monetária, não é o trabalho de um quantitativista rígido. A hipótese do pleno-emprego tornava-o imune, porém, em sua análise convencional da inflação brasileira, à crítica keynesiana.

Armado de um sistema analítico engenhosamente adaptado para enfrentar as questões da economia política brasileira, Gudin foi o grande adversário teórico dos desenvolvimentistas brasileiros de orientação nacionalista. Um adversário aguerrido, sem dúvida, porque, politicamente, era um liberal e um conservador dos mais fervorosos. Talvez por isso mesmo, sua discussão relativa à questão do planejamento econômico seja algo incompleta se comparada a outras questões essenciais. Predominou nessa questão sua obsessiva oposição política a intervenções do Estado na economia, que considerava corresponderem a perigosas concessões ao socialismo. Daí decorre o tom marcadamente ideológico de alguns dos seus textos.

Procuramos, aqui, fazer uma resenha razoavelmente abrangente da obra do autor. Torna-se imediatamente evidente, logo num primeiro contato com a mesma, que suas idéias estão solidamente sedimentadas num firme alicerce teórico, e que seu raciocínio sobre questões concretas passa freqüentemente por essa elaboração sistemática da aplicabilidade dos seus fundamentos teóricos à análise da realidade. É mesmo parte do seu estilo de professor pioneiro do ensino sistemático de Economia no Brasil fazer, como artifício didático, as pontes necessárias entre a retaguarda teórica e a superfície concreta de suas argumentações aplicadas à economia brasileira.

Nossa resenha reproduz o percurso lógico do pensamento de Gudin: inicialmente, fazemos uma breve apreciação de seus fundamentos teóricos; em seguida, analisamos seu pensamento no que diz respeito à aplicação da teoria econômica aos países subdesenvolvidos.

O grande mestre da corrente neoliberal brasileira possuía uma argumentação teórica consistentemente articulada, com a qual sustentava e enriquecia suas análises da economia brasileira.

 

 

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142001000100009

 

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