Sua lucidez diante do totalitarismo não a ajudou a compreender o processo mental nem a vileza dos que o exerceram
Hannah Arendt nunca se esqueceu dos anos de sua vida em que não teve um país, em que andou de um lado para o outro com documentos provisórios e em que esteve, a cada momento, à mercê de um policial que os pedisse ou de um guarda de fronteira que se negasse a carimbá-los. Tinha 27 anos quando fugiu da Alemanha, em 1933, e se refugiou, temporariamente, em Paris. Como contou, amargamente, o jornalista e escritor espanhol Manuel Chaves Nogales (1897 – 1944), os expatriados e os fugitivos dos regimes ditatoriais da Europa chegavam à França atraídos pelos ideais universais de liberdade e cidadania da Terceira República, mas, em vez de um refúgio, encontravam uma armadilha, porque, no país, na metade da década de 1930, se espessava uma atmosfera de xenofobia que fazia com que as vítimas das ditaduras e perseguições fossem vistas como inimigos preparando emboscadas, apátridas perigosos que traziam consigo sua miséria e ofendiam a boa consciência das pessoas ordeiras com seus presságios de desastres.
Hannah Arendt, assim como Nogales, Walter Benjamin e tantos outros, passou anos sobrevivendo de forma irregular em Paris, despojada de sua nacionalidade alemã pelo Governo hitleriano e incapacitada de adquirir qualquer outra. Em seu próprio país, era uma estrangeira indesejável por ser judia: mas, na França, era considerada suspeita por ser alemã. Quando os alemães invadiram a França, em 1940, se lançaram à caçada de todos os dissidentes que tinham escapado do nazismo nos anos anteriores, mas descobriram que a República francesa já tinha se encarregado de parte do trabalho. Hannah Arendt, que era uma apátrida desde 1933, foi mandada pelos franceses a um campo de concentração, em 1939, por ser alemã e, portanto, uma inimiga. Se não tivesse escapado a tempo, os alemães a teriam mantido presa, e, provavelmente, a executariam por ser judia.
Nas fotos de sua juventude, Arendt transmite, através do olhar, uma expressão de inteligência e paixão. Em meio à hostil intempérie do exílio, ela conheceu o amor de sua vida, um compatriota antifascista alemão, que não era judeu, Heinrich Blücher. Em 1941, quando toda a Europa se afundava na escuridão, conseguiram escapar para os Estados Unidos. Eu visitei o pequeno cemitério em um bosque perto do rio Hudson, na parte alta do Estado de Nova York, onde estão, juntas, as duas lápides do casal, sobre a terra, entre a grama e as folhas.
Arendt morreu em 1975. Nos Estados Unidos, ela obteve, por fim, uma nacionalidade definitiva, e, em Nova York, a posição acadêmica e intelectual que merecia, mas, a experiência de seus anos sem país e, portanto, sem direitos, a marcou para sempre, e se converteu no eixo vital de suas convicções políticas e de suas tempestuosas posições públicas. As calamidades do totalitarismo e da II Guerra Mundial, para ela, tinham tido sua origem não tanto nas matanças industrializadas da Primeira Guerra, mas nas multidões de imigrantes, refugiados e apátridas que o conflito gerou.
Nada cria, tão rápido, tantos estrangeiros como um processo de construção nacional. Graças à devastação da guerra e ao invento dos Estados nacionais que ocuparam o espaço deixado pelos impérios vencidos, milhões de pessoas tiveram que abandonar, apressadamente, seus lugares de origem, e se encontraram desprovidos de identidade civil. E também houve milhões que sequer tiveram que se deslocar para se converterem em estrangeiros: bastou que algum comitê patriótico alterasse as fronteiras em um mapa, ou que decidisse que a identidade tinha a ver com a origem ou o idioma, ou que um judeu não podia ser cidadão do país em que sua família já vivia há várias gerações.Arendt morreu em 1975. Nos Estados Unidos, conseguiu, por fim, uma nacionalidade definitiva, e, em Nova York, a posição acadêmica e intelectual que merecia
Hannah Arendt viu tudo isso. Em suas cartas e ensaios, as reflexões políticas sobre a condição do refugiado têm uma urgência de relatos autobiográficos. Em um documentário que acaba de estrear em um pequeno cinema de Nova York,Veta Activa. The Spirit of Hannah Arendt, sua diretora, Ada Ushpiz, conseguiu mesclar o rigor histórico e biográfico com a plena expressividade da linguagem do cinema. Hoje em dia, poucas coisas são, na minha opinião, tão atrativas estética e intelectualmente quanto um documentário muito bem feito.
No filme se ouve a voz rouca e de fumante de Hannah Arendt, em seus últimos anos de vida, mas é uma outra, também de mulher, que lê as cartas de sua juventude e de seu desterro. Enquanto a escutamos, vemos a formosa caligrafia, quase taquigráfica, de Arendt, as palavras que ela devia escrever com tanta rapidez em um papel que já se tornou amarelo, e também imagens intercaladas daqueles anos, como um contraponto, algumas vezes de barbárie e outras de trivialidade. Em um filme caseiro, oficiais alemães debocham das preces judias, cobrem suas cabeças com cortinas e almofadas e se matam de tanto rir. Em outra, dois militares, vestidos com camisetas, dançam em frente à porta de um barracão. Um operário instala uma chaminé em um edifício de um campo: em seguida, coloca outra chaminé em sua cabeça como se fosse um chapéu, e sai caminhando alegremente.
Hannah Arendt era tão corajosa e desafiante quando acertava quanto quando se equivocava. E como às vezes acontece com pessoas muito adestradas em relação ao pensamento abstrato e aos debates de ideias, não parecia que ela tinha muita perspicácia para julgar seres humanos reais. Sua lucidez diante do totalitarismo não a ajudou a compreender os processos mentais nem a baixeza íntima das pessoas que o apoiaram e praticaram. Nunca chegou a aceitar que seu venerado professor e amante da primeira juventude, Martin Heiddeger, não fosse mais do que um nazista, um cínico miserável que, depois da guerra, se disfarçou de velho ermitão filosófico para negar sua ligação com os açougueiros.
E, estranhamente, não soube, ou não quis, ver o que havia por trás da máscara de mediocridade e mansidão que Adolf Eichmann adotou quando estava sendo julgado em Jerusalém. Acertou, parcialmente, no meu entender, em um conceito: o da banalização do mal, que estará associado, para sempre, a ela. Os maiores horrores e os mais terríveis sofrimentos podem ser causados por pessoas superficiais e medíocres, em nome de razões estúpidas, de ideias de quinta categoria, ou, simplesmente, por uma questão de obediência, inércia, moda, e pressão de comentários alheios.
Adolf Eichmann não era muito inteligente, mas também não era um burocrata asséptico que se encarregou da logística formidável da Solução Final porque mandaram, se tivesse sido assim, ele teria organizado uma rede de distribuição de mantimentos, ou de gasolina, que era a sua função, sem nenhum brilho profissional, antes de entrar para o partido nazista. Como muita gente já sabia, e como esclareceram investigações posteriores realizadas na Argentina, Eichmann era um nazista convencido, um verdugo plenamente consciente da magnitude sanguinária de sua tarefa.
Em seu próprio país, era uma estrangeira indesejável por ser judia: mas, na França, era considerada suspeita por ser alemã
No entanto, há uma parte do legado da Hannah Arendt que se torna mais relevante a cada dia. Sua voz soa contemporânea quando identifica o totalitarismo com a negação sistemática de aceitar a realidade, e escolher a fantasia ideológica ou a pura ficção em vez da racionalidade e do empirismo. Quem vê agora como a Europa renega os estrangeiros que fogem da guerra e o fanatismo, se lembra daqueles rios de refugiados entre os quais Hannah Arendt caminhou em sua juventude.
El País – Opinião
http://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/26/cultura/1461669894_626416.html