MAÇONARIA E CULTURA

Antônio Binni
Grão-Mestre Emérito da Grande Loja da Itália

Em um mundo de imprudentes irracionais, que é o que nos consome todos os dias hoje, a Maçonaria é um hóspede indesejável e em qualquer caso incômodo porque nos ensina a pensar. Fiéis a esta lição, queremos dedicar hoje a nossa reflexão ao tema escolhido porque, além de intrigante, não é, pelo menos até onde sabemos, o tema de toda aquela consideração que, pelo contrário, certamente merece.

Na verdade, não existem estudos específicos sobre o assunto. Daí seu tema. Perguntemo-nos então em que relação se encontram os dois termos que constituem o título destas notas. Indiferença mútua? Antítese? Identidade? Ou mais? Mesmo antes disso, de acordo com o que o rigor e o método impõem, devemos, no entanto nos perguntar o que queremos dizer, e por cultura, e por Maçonaria.

Quando abordamos o tema da cultura, um fato é imediatamente evidente. A cultura não é um fato homogêneo. Na verdade, há uma pluralidade de formas culturais que se distinguem entre si em bases diferentes, por exemplo, territoriais (cultura popular; camponesa) ou históricas (cultura primitiva). Essas distinções, é claro, são ditadas apenas pela simples conveniência de exibição. Para dar à noção um sentido completo, como ensinou Hegel, é necessário, portanto, resgatar um conceito unitário de cultura. Uma vez colocado sob esse ângulo, deve-se reconhecer que existem muitas e excelentes definições de cultura.

Com a intenção, no entanto, de oferecer uma contribuição pessoal também deste último perfil, com uma visão antropológica do fenômeno, arriscamos uma nossa. Em nossa opinião, cultura pode ser definida como aquele complexo de tradições e saberes, nos inúmeros campos do saber característicos de um povo, que se transmite de uma geração a outra. Cada povo é, de fato, o criador de sua própria cultura, mas também o protagonista de sua própria história. Mantendo-se rigorosamente ancorado numa visão unitária da cultura, não se pode esquecer que, sob o mesmo paradigma, fervem diferentes culturas que apresentam conflitos, por vezes pacíficos, mas mais frequentemente, conflituosos, uma vez que um tipo de cultura pode se apresentar como um questionamento perigoso da integridade cultural de outra pessoa e até mesmo uma ameaça genuína.

Daí a reação voltada para a absorção cultural, entendida principalmente como um processo de ocidentalização, mas destinado ao fracasso, principalmente quando o embate se dá entre culturas que são expressão de diferentes sociedades caracterizadas particularmente pelo fenômeno religioso. Mais uma vez, a etimologia da palavra ajuda a enquadrar e aprofundar o conceito. Cultura vem do verbo latino colere = cultivar.

A expressão referente à terra significa cultivo; relacionado ao homem, educação e instrução; para o povo, a civilização vale, expressando o cuidado assíduo para alcançá-la, igual ao do agricultor.

A cultura é, portanto, a elevação do único indivíduo ao coletivo social.

Toda cultura é dinâmica, porque tem uma capacidade criativa que está aninhada em cada pessoa que enfrenta ou tenta responder às diferentes situações, internas ou externas, que a evolução do tempo lhe reserva. A partir desse perfil, todo ser humano é filho e pai da cultura na qual está inserido.

Acultura tem três características negativas. Em primeiro lugar, não faz parte do patrimônio genético, pois é aprendido pelos indivíduos no contexto em que são formados.

Em segundo lugar, não se encaixa em uma esfera metafísica porque é sempre uma expressão de uma orientação prática de um determinado grupo social.

Por último, porque nunca é um tipo de crescimento orgânico e harmonioso, visto que se realiza por meio de lacerações sucessivas. Resta uma polêmica questão de saber se a cultura é um fenômeno autônomo, visto que ainda são – e acima de tudo – as chamadas classes dominantes que a formam. Nesse panorama, ainda que sintético, deve-se lembrar, por fim, que também não faltaram aqueles que viam a cultura como fator negativo, pois ela se realizaria de forma primária através da repressão das pulsões individuais do homem.

Assim Freud em Totem e tabu (1914) e em Desconforto da civilização (1930) e, posteriormente, também Jung,  que, ao enfrentar a vida, sugeriu aproximar-se do caminho … sem bagagem. Esta última tese é absolutamente minoritária, considerada, pelo contrário, que a cultura, entendida no sentido antropológico, a partir do perfil coletivo, é um fator indiscutível de coesão social, enquanto do subjetivo se configura como a ferramenta que a torna possível aos indivíduos, para alcançar propósitos socialmente aceitos.

Por fim, deve-se notar – e o ponto é fundamental – que, sem cultura, não há liberdade. Quanto à Maçonaria, é um fenômeno tão complexo e articulado que não é possível aprisioná-lo em uma definição aceita univocamente. Por esse motivo, os estudiosos preferem descrevê-lo de forma negativa.

Ensina-se assim que a Maçonaria não é uma filosofia (porque a Maçonaria também é uma prática ética individual), nem uma ciência (porque não tem um único saber por objeto), nem uma antropologia (porque está a serviço de todos único homem considerado na sua qualidade irrepetível), nem um método (porque na investigação não impõe um caminho obrigatório).

Em particular, é enfatizado firmemente que a Maçonaria não é uma religião (porque não propõe sacramentos, nem tem dogmas, nem tem sua própria teologia, nem pretende levar as almas à salvação post mortem, tendo em vez disso como propósito acima de tudo – mesmo que não apenas – libertação da ignorância e dos constrangimentos da finitude).

Posto de forma bastante correta, porém, deve-se igualmente reconhecer que a Maçonaria, numa espécie de hibridização, porém, acaba tendo contatos com todas as disciplinas anteriores. Por exemplo, com a filosofia (como busca da Verdade) e com a ciência (pois, em suas investigações, ainda faz uso tanto do método dedutivo quanto do indutivo).

Em particular, tem pontos de tangência irreprimíveis com a religião, já que até a Arte Real está ancorada no Sagrado. Na verdade, certamente não é coincidência que o esquadro e compasso sejam colocados no Livro.

Para a verdade histórica, deve-se então lembrar que nem mesmo existem estudiosos que tenham tentado definir a Maçonaria positivamente. Em nossa opinião moderada, mas ponderada, entretanto, essas são tentativas malsucedidas. Assim, quando a Maçonaria foi definida como uma associação filantrópica, ou uma união de homens que buscam a verdade, que praticam a fraternidade e a ajuda mútua, o sinal certamente não foi captado porque nenhum desses elementos (nem a filantropia, nem a busca da verdade, nem fraternidade, nem solidariedade) é própria e exclusiva da Maçonaria que, por outro lado, resume todas elas.

Disto decorre não apenas a insatisfação pessoal de ancorar um fenômeno composto e complexo como o atomístico a conceitos vagos e imprecisos, certamente não caracterizantes, sem os quais o fenômeno não existe, na presença da qual o fenômeno existe. Si parva licet, nos permitimos argumentar que a Maçonaria é uma arte. Como todas as artes, no entanto, não tolera as restrições de qualquer definição.

Chama-se então Arte Real porque, como ortopraxe, transmuta o Ser em Homem real e autêntico, envolvendo-o numa aventura espiritual que nada mais é do que um misto de estudo, reflexão, imaginação e fantasia que, combinados com o quotidiano A prática da vida, torna o caminho acidentado de cada um único, exclusivo e irrepetível. Tendo definido os dois lemas do problema dessa forma, resta agora abordar a questão delicada e complexa da natureza da relação entre a cultura e a Maçonaria.

À luz dos resultados alcançados anteriormente, é muito óbvio que as duas noções não são antitéticas entre si, porque claramente não estão em conflito. A solução para o problema levantado deve, portanto, ser buscada em outro lugar. Tendo em conta o local a que se  destinam estas notas, certamente não é possível desenvolver o tema, e todas as suas complexas implicações, a cada respiração necessária. Limitamo-nos, portanto, a propor um esboço simples do nosso pensamento, que nos permita vislumbrar uma resposta à questão levantada, pelo menos subjetivamente satisfatória. Essas são as passagens pelas quais o argumento se desdobra. Acultura deve ser – e permanecer – livre. Qualquer censura, mesmo a mais fraca e matizada, deve ser combatida com determinação, mesmo que seja necessária com ferocidade.

O maçom baseia-se na cultura secular. Alimenta-se dele, porque com as suas múltiplas contribuições e, sobretudo, com as representações evocativas do mundo que o mesmo gradualmente se propõe, torna-se um momento essencial de comparação e crescimento que torna mais fácil para o iniciado mendigar. Pode-se, portanto, hipotetizar uma relação funcional no sentido de serviço de um (cultura) em benefício do outro (Maçonaria); sem prejuízo, porém, da profunda mudança de sentido que a cultura assume tanto no mundo profano quanto no mundo atomístico.

Na verdade, enquanto na primeira busca e geralmente também alcança o sucesso mundano, a cultura na Maçonaria, em vez disso, obedece a outro propósito muito mais elevado, que é o da realização, na cabeça do iniciado, de sua humanidade mais completa, e esta até a última vogal que conclui a palavra. A cultura é, portanto, configurada como o próprio alicerce sobre o qual se baseia a Maçonaria. Do resto, sabe-se que não existe um maçom autêntico que não seja, ao mesmo tempo, também um ser humano altamente culto. No entanto, permanece indiscutível – a circunstância deve ser reiterada – que o uso da cultura na Maçonaria é diferente daquele que a cultura absolve na comunidade.

Os dois propósitos, de fato, são e permanecem diferentes. Tanto quer dizer que o caminho iniciático exige um salto qualitativo porque a cultura exige uma finalidade diferente, que é tornar o Homem cada vez mais consciente, cada vez mais autêntico, cada vez mais humano. Para colocá-lo, conclusivamente, em termos diferentes, mas substancialmente o mesmo que o que foi argumentado até agora, a Maçonaria não pode ser atribuída à cultura de cada conhecimento individual (filosófico, científico, etc.), por definição unilateral, pois é limitado em que é formado. Caso contrário, testemunharíamos uma cultura supérflua como uma duplicação inútil.

Portanto, se, como sugere a lógica, faz sentido falar de cultura na Maçonaria, é necessário reconhecer a Maçonaria como uma cultura específica, por definição totalizante, voltada para o desenvolvimento da humanidade oculta em quem a pratica e vive, a recuperação da sua essência mais profunda, a observância de seu destino mais autêntico. Resultado humano entendido como projeto e como tarefa nascida da liberdade.

 

(*) Fonte: Revista Officinae.

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