Ir∴ Joaquim G. Santos,
Membro da Loja de S. João Fiat Lux nº 537,
Oriente de Lisboa, filiada ao G∴O∴L∴.
https://independent.academia.edu/joaquimSantos4
Sendo a Iniciação Maçónica um exemplo típico de Rito de Passagem, a mesma obedece sempre a uma estrutura ternária, em cuja fase preliminar, ou de separação, se isola o candidato do mundo que o rodeia, preparando-o para a fase central da cerimónia, dita liminar ou de margem, na qual se dá a transformação ontológica que permitirá a sua agregação ao novo grupo, que neste caso é a Loja.
O modo como se efetua esta separação difere consoante o Rito Maçónico praticado.
Assim, enquanto que nos Ritos Anglo-Saxónicos a mesma se concretiza pela passagem do profano por um simples recinto fechado e pouco iluminado, nos Ritos Continentais, para além destes aspetos, este habitáculo encontra-se provido de determinados objetos, com caráter simbólico, destinados a favorecer a reflexão do candidato, preparando-o para o que irá ouvir, na sua receção em Loja.
Distinguem-se, neste último caso, a Câmara de Preparação do Regime Escocês Retificado, da Câmara de Reflexões dos Ritos Francês, Escocês Antigo e Aceito e, Antigo e Primitivo de Memphis-Misraim.
Se no Regime Retificado a meditação do candidato é apenas suportada pela presença da Bíblia e, de um quadro alegórico relativo à brevidade da vida humana, na Câmara de Reflexões dos restantes Ritos Continentais são vários os símbolos presentes, complementando-se ainda os mesmos com mensagens inscritas nas paredes da divisória em questão.
Entre estes elementos figuram corrrentemente, dispostos sobre uma mesa, recipientes contendo Sal, Enxofre e, eventualmente, Mercurio. A interpretação destes símbolos é quase consensualmente associada a princípios Herméticos, apresentando, pois, uma origem alquimica, à semelhança da inscrição “VITRIOL”, também frequentemente presente em uma das paredes da Câmara.
Esta referencia consiste no acrónimo de uma expressão latina muito utilizada na iconografia alquimista:
“Visita Interriora Terrae Rectificandoque Invenies Occultum Lapidem” – (Visita o interior da Terra e purificando encontrarás a pedra escondida).
Atribui-se a origem desta expressão iniciática a um alquimista alemão do século XV, cujo nome hermetista foi Basile Valentin. Este monge beneditino, fiel na tradição alquimista e cabalista, multiplicou nas suas obras as chaves, alusões, jogos de palavras, acrónimos, fábulas e, alegorias, tornando os seus textos impenetráveis aos profanos curiosos.
Se esta exégese alquimica dos símbolos Sal e Enxofre se torna indiscutivel no REAA e nos Ritos Egipcios, será a mesma válida para o Rito Francês, cujo substrato simbólico é estritamente véterotestamentário ?
Ou estaremos, pelo contrário, perante um olhar substituído da interpretação inicial, perdida durante os últimos dois séculos ?
A resposta a esta questão obriga-nos a recuar aos primeiros vestigios de prática de uma fase de separação deste tipo, os quais, no caso da Maçonaria Francesa, remontam a 1737.
Na mais antiga divulgação publicada neste país, denominada de “Recepcion d’un frey-maçon”, documento este transcrito do relatório do tenente de policia Herault, elaborado com base em informações recolhidas por Mle. Carton, corista da Opera de Paris, é referido que no decurso de uma cerimónia de Iniciação, o candidato era conduzido pelo seu Padrinho a uma divisória privada de luz, na qual era interrogado no que concerne à sua vocação para ser Maçon.
Caso persistisse na sua decisão, era preparado para a entrada em Loja, por meio da recolha dos Metais, da privação da vista pela imposição de uma venda, e da materialização do estado “nem vestido nem despido”.
O sentido simbólico deste procedimento encontra-se revelado no Catecismo de Aprendiz do mais antigo ritual francês conhecido (Ritual de Luquet, 1745), no seguinte excerto:
“P: Onde foste preparado para entrar em Loja ?
R: Nas Trevas.
P: Porquê ?
R: É para me recordar o caos donde tudo foi tirado.”
Encontramo-nos, pois, perante uma exploração simbólica da ausencia de iluminação, que confirma o caráter essencial assumido pelo mito da dualidade entre a Luz e as Trevas, como suporte dos Trabalhos da emergente Maçonaria Francesa, bem como a intenção clara de provocar no candidato uma preparação adequada à cerimónia na qual iria participar.
Estes dois aspetos são-nos confirmados pelo Abade Pérau, na sua divulgação “Le Secret des FrancsMaçons”, de 1742, na qual é referido “onde não deve haver nenhuma luz o que em todo o caso exprime já uma simbólica, e o desejo de colocar o recipiendário num estado psicológico apropriado”.
O “Quarto Escuro”, como é denominado em algumas fontes da época, irá complexizar-se pela inclusão de elementos tais como um livro de orações, ou de imagens alusivas à morte. Constitui um exemplo do primeiro caso o “Ritual de Uzerche”, datado de 1780, e uma referência do segundo aspeto o “Ritual do Duque de Chartres”, datado de 1784.
É contudo com a fixação do Rito Francês, em 1786, que encontramos uma descrição pormenorizada de uma Câmara de Reflexões próxima das atuais.
De acordo com o “Régulateur du Maçon”, publicado em 1801, “Esta câmara deve ser impenetrável aos raios do dia e iluminada por uma única lâmpada. As parede serão pintadas de negro e carregadas de emblemas fúnebres capazes de insperar o receio, a tristeza, e o recolhimento. Frases de uma moral pura, máximas de uma filosofia austera serão traçadas legivelmente sobre as paredes, ou suspensas emolduradas em diversos pontos deste isolamento. Um crânio, ou mesmo um esqueleto, se se puder obter um, recordarão ao neófito as coisas humanas.
Não deve haver neste quarto mais do que uma cadeira, uma mesa, um pão, um copo cheio de água, sal e enxofre em duas taças, papel, penas e tinta.
Sobre a mesa serão representados um galo e uma ampulheta. Debaixo destes emblemas colocar-seá as palavras VIGILÂNCIA E PERSEVERANÇA”.
Constatamos, assim, que na Câmara de Reflexões original do Rito Francês se encontram presentes o Sal e o Enxofre, mas não existe qualquer referência ao Mercurio e ao “VITRIOL”, correntemente utilizados no REAA, bem como nos Ritos Egipcios.
Na revisão dos Rituais do Rito Francês realizada em 1858, e denominada de “Murat”, nenhum dos símbolos presentes na Câmara de Reflexões do “Régulateur” foi removido, não se acrescentando mais nenhum elemento.
Encontramo-nos todavia, já nesta altura, no periodo romântico da Maçonaria oitocentista, no qual foram introduzidas diversas interpretações Hermetistas, com o objetivo de descristianizar os rituais, acentuando-se, deste modo, o seu caráter deísta e, procurando-se referencias culturais tidas por mais universais do que as iniciais, de indole predominantemente cristã.
Um dos autores maçónicos mais profícuos nesse sentido, Jean-Marie Ragon, identifica claramente a passagem pela Câmara de Reflexões com a prova da Terra, no seu “Ritual do Aprendiz”, ligeiramente posterior à “Revisão Murat”.
Esta interpretação encontra-se igualmente presente nos rituais REAA de 1829, do Supremo Conselho de França, bem como nos primeiros Rituais dos Ritos Egipcios (Misraim, 1820 – Memphis, 1838).
Entre os autores deste periodo começou, pois, a ser frequente uma religação da Iniciação Maçónica às iniciações aos Mistérios do Antigo Egipto, ou ao processo de Transmutação Alquimica, sendo a Câmara de Reflexões frequentemente associada a uma Caverna onde decorre a Prova da Terra, ou ao Athanor onde se realiza a fase da “Obra em Negro”.
Entre os simbolistas do REAA, no principio do século XX, estes conceitos foram desenvolvidos e, aprofundados, em termos de analogias a diversas correntes esotéricas, ressaltando-se, neste aspeto, os contributos dos Irmãos Oswald Wirth, e Jules Boucher.
No Rito Francês, as revisões Amiable, de 1887, e Blatin, de 1907, conduziram a uma redução dos símbolos, em detrimento da inclusão de longos discursos filosóficos, ou moralizantes, por força de uma forte corrente positivista, e laicisista, que condicionou a reformulação dos rituais do Grande Oriente de França, no final do século XIX.
No que concerne à Câmara de Reflexões, os símbolos Sal e Enxofre desapareceram na Revisão Amiable, de 1887, só tendo sido reintroduzidos nos Rituais de Referência do Rito Francês Groussier, produzidos pela mesma Obediência, já no século XX.
De acordo com o Ritual de Referência de 6009, são símbolos obrigatoriamente presentes na Câmara de Reflexões o Crânio (ou Esqueleto), e uma Ampulheta regulada para meia hora, sendo opcionais a utilização do Pão, da Água, do Sal, do Enxofre e, da Gadanha (muitas vezes substituida por uma Foice).
Na parede poderá encontrar-se representado um Galo, bem como a inscrição “VITRIOL”.
No inicio da cerimónia em Loja, é explicado ao recipiendário que a Câmara de Reflexões consiste “num local fechado à Luz do dia, simbolizando as entranhas da terra, onde vos fizemos entrar para romperdes com a vossa vida anterior”.
Relativamente aos símbolos Pão, Água, Sal e, Enxofre, neste ritual é referido que “o Pão e o Sal, que eram oferecidos ao viajante, sob o signo da hospitalidade; com a Água eles representam o menu frugal do sábio em vias de se desembaraçar das paixões humanas; O Enxofre e as outras substancias que haveis visto serviam aos Alquimistas que haviam atribuído às suas conjunções valores simbólicos”.
Estamos, pois, na presença de uma contradição de sentidos. Assim:
Por um lado o Groussier 6009 pretende dissociar-se das interpretações clássicas do REAA, atribuindo a alguns dos símbolos significados muito concretos, e nada esotéricos, conetados com dois dos eixos fundamentais do Rito, a Fraternidade e, a Humildade. Tal é o caso da hermeneutica encontrada para o Pão e o Sal, a qual decorre de um costume árabe.
Contudo, podemos dizer que se trata de uma revisão muito escocista do Rito Francês, na qual a simbólica da Câmara de Reflexões não escapou a sincretismos do REAA. Como atrás foi referido, nunca na história do Rito foram alguma vez utilizadas a inscrição “VITRIOL”, bem como referências explicitas à prova da Terra, ou à Alquimia.
Perante esta encruzilhada de equivocos, qual é a real interpretação dos símbolos Sal e Enxofre na Câmara de Reflexões do Rito Francês, e qual o seu sentido no percurso iniciático propiciado por este Sistema Maçónico, na sua origem e, na atualidade ?
Esta tem sido uma questão que tem sido objeto de reflexão entre alguns dos estudiosos contemporâneos do Rito, concretamente entre os que se encontram ligados às suas formas ditas
“Tradicionais”.
Para Hervé Vigier a Câmara de Reflexões do Rito Francês, de 1786, não assumia um caráter predominante de confrontação do candidato com o antagonismo morte/renascimento, mas sim de convite à reflexão no que concerne ao passo que o profano tinha a intenção de dar, o qual se prentendia que fosse um exercicio de plena liberdade de consciencia.
Assim, era entre a dicotomia configurada pelo ternário de símbolos de esperança, protagonizado pelo Pão, pela Água e, pela Luz, e o ternário de símbolos de desolação, materializado pelo Sal, pelo Enxofre e, pelo Crânio, que o recipiendário deveria escolher, amparado pela mensagem “VIGILANCIA E PERSEVERANÇA”, que acompanhava o Galo e a Ampulheta desenhados na parede, e com a promessa também aí presente numa inscrição, de que “Tu sairás do abismo das Trevas, e tu verás a Luz”.
Philippe Thomas, reforça esta interpretação de Hervé Vigier, considerando que sendo a base do Rito Francês exclusivamente vétero-testamentária, a interpretação dos símbolos Sal e Enxofre encontrase associada ao mito da mulher de Lot, retirado da Bíblia, do qual se deve extraír uma hermeneutica exclusivamente simbólica, e não teológica, à semelhança do que é corrente fazer-se em outras lendas retiradas das Escrituras, que suportam o trabalho de numerosos Altos Graus Maçónicos.
Recorde-se que, de acordo com Génesis 19, “Então o Senhor fez caír do céu sobre Sodoma e Gomorra uma chuva de enxofre”, e “A mulher de Lot que tinha olhado para trás ficou transformada numa estátua de sal”, podendo assim, o Enxofre ser associado à destruição e, o Sal às consequencias de se olhar para o passado ou, no limite, à desobediencia.
Como suporte desta interpretação, constitui um facto que a lenda da mulher de Lot integrava o universo mitológico de outros Sistemas Maçónicos existentes à época, nomeadamente o Rito de Adoção, no qual veiculava um dos seus princípios fundamentais, o da necessidade imperiosa de obediencia.
Este aspeto encontra-se plasmado na pergunta-resposta que figura em quase todos os Catecismos do século XVIII, deste Rito:
“P: Qual é o dever dos Maçons e das Maçonas ?
R: Obedecer, Trabalhar e, Calar-se.”
Um símbolo é sempre algo que se associa a uma ideia, a imagem visivel de uma realidade invisivel. Como tal, não se explica, mostra-se, competindo a cada Irmão fazer a sua exegese pessoal, através de um processo interno, que o levará a uma apropriação do símbolo intransmissivel, e tanto mais lata consoante for a sua capacidade de nele mergulhar.
A hermeneutica de um Símbolo Maçónico parte, pois, de uma base mais material, constituída pelas interpretações transmitidas pelos rituais dos diversos Ritos, e desenvolve-se segundo vértices predominantemente intelectuais e, espirituais, em função dos elementos adicionais a que o Irmão possa recorrer na sua interpretação, fruto dos seus conhecimentos e, do seu livre arbitrio.
Assim, as interpretações constantes dos rituais são, apenas e somente, a primeira letra do que poderá vir a ser um longo texto.
As mesmas, contudo, não deixam de ter um papel determinante na orientação desta transmissão, que tanto se efetua a partir dos que a dão como dos que a recebem, pois dela resulta o património a transmitir aos novos elos da Cadeia Iniciática.
Torna-se, assim, fundamental que estas primeiras letras não só se encontrem coerentes com as bases filosóficas dos Ritos, como também que se apresentem sintonizadas com as épocas nos quais os mesmos são praticados. Como tal, em minha opinião, os Símbolos podem, e devem, ir assumindo interpretações “oficiais” diferentes, ao longo da História dos Ritos, desde que as mesmas não violem as suas bases filosóficas e, o seu sentido iniciático original.
O Rito Francês estruturou-se no século das Luzes, profundamente influenciado pelos valores que emergiam à época, de enciclopedismo, humanismo, desenvolvimento da responsabilização de cada individuo na sociedade, livre pensamento e, de ideal de liberdade.
Nunca existiu Alquimia no Rito Francês, no qual a Grande Obra consiste na construção da Fraternidade, que é simultaniamente a pedra de fundação e o fecho da abóbada dos Templos interior, e exterior, que o Maçon pretende edificar, no seu percurso iniciático, e na sua participação na sociedade.
A missão última do Maçon do Rito Francês é a reunião de todos os Homens em torno do eixo do Mundo, que é o Amor Universal, sendo a opção fundamental entre a morte no imobilismo e, a vida pelo empenhamento nesta demanda, aquela que, no presente, e ao longo de todo o seu percurso iniciático, ele deverá continuamente ir fazendo, em plena liberdade de consciencia.
Se era cara-a-cara, sem qualquer venda, que em pleno “Quarto Escuro”, o candidato oitocentista tinha de confirmar que tinha “vocação”, não deixa de ser a Iniciação no Rito Francês atual, a cerimónia na qual se pergunta mais vezes ao Recipiendário se está seguro do passo que pretende dar, enfatizandose, assim, o livre arbitrio do mesmo.
A interpretação dada aos símbolos Sal e Enxofre na Câmara de Reflexões deste Sistema Maçónico constitui, pois, em minha opinião, um bom exemplo de um caso no qual a interpretação que se supõe original continua a ser a mais consentania com o espirito, e a letra do Rito, fazendo igualmente sentido a necessidade desta opção constante entre o imobilismo e a ação, tanto ao Maçon do século das Luzes como ao Irmão atual.
Escolher o empenhamento constante no trabalho, dentro e fora do Templo, pelo progresso da Humanidade, será sempre a melhor forma de interiorização do sentido primordial do Rito Francês, projectando-se o perseverante, sempre vigilante, na demanda por um futuro mais Justo e mais Fraterno, num caminho sem retorno.
Para o Maçon Francês, olhar para trás reflete a imagem da mulher de Lot, transformada em sal perante a visão da destruição; prosseguir construindo relembra a velha aclamação Francesa “Vivat, Vivat, Semper Vivat”, não referida ao Rei como então, mas sim, no aqui e agora, à Maçonaria Universal, à República, à Laicidade e, em suma, à Humanidade.
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