Percival Puggina
14/10/2023
Esquerdistas festejaram. “O amor venceu!”, afirmavam, porque o retorno de Lula ao Palácio do Planalto representaria a consagração de um generoso projeto político. Afinal, o PT voltava lavado, enxugado, passado (passado apagado, quero dizer), ficha limpa para realizar o sonho de seus “pais fundadores”. As portas se abriam às delícias de uma sociedade igualitária, paraíso terrestre de que o esquerdismo fala nas salas de aula, nas redações e nos microfones, nos púlpitos, nos palanques, nas tribunas e nos tribunais. Bons parceiros para isso não faltam no Foro de São Paulo.
Com meus duvidosos botões pensei ser bem mais simples começar a experiência nos próprios “coletivos” em que se agrupam os militantes dessa ideologia. Ou seja, comecem com o exemplo de suas lideranças. Por certo, algo nesse sentido emergiria das três dezenas de comissões de transição instaladas após o pleito do ano passado. Naquela mescla de figurões e figurinhas, mais de mil pessoas – lembram? – transitaram junto com a transição até a posse de Lula. Raramente se viu tão prolongado desapego aos próprios interesses e ocupações para servir à causa de uma sociedade igualitária.
Por ela lutavam os integrantes do Movimento dos Sem Pasta. Eram tantos e tão valiosos os servos da Pátria que foi necessário aumentar em 65% o número de pastas ministeriais fazendo-as saltar de 23 para 38. O serviço total a ser executado pela União permanece o mesmo. O governo está, apenas, proporcionando à sociedade um exemplo inspirado na partilha cristã: dar ministérios e diretorias a quem não tem. Você é que não entendeu o espírito da coisa.
Michel Temer, entre realizações boas e indicações terríveis, conseguira aprovar a Lei das Estatais fechando a porta das empresas federais às indicações políticas e exigindo provas específicas de competência, experiência e desvinculação dos comandos partidários. Bastou isso para que, nos anos subsequentes, as empresas do Estado deixassem de contabilizar prejuízos, acabasse a corrupção e surgisse essa coisa chamada lucro que o esquerdismo considera moralmente desprezível.
O “espírito da coisa” exigia haver partilha, mas como promovê-la, sem o comando das estatais? Era imperioso estar dentro e, para entrar, impunha-se revogar as exigências da Lei das Estatais, tarefa da qual a nova legislatura não queria nem ouvir falar. Levado em mãos pelo PCdoB, o recurso ao Supremo (ADI 7331) bateu na mesa do ministro Lewandowski e voltou atendido. Os cargos e penosos encargos podiam ser, novamente, confiados aos companheiros.
No mesmo momento, o espírito da coisa foi embora pela chaminé. Hoje, há ministros do governo com remunerações catapultadas para 70 e até 80 mil reais mensais. Para os dirigentes das estatais, o infinito fica ao alcance da mão.
E a sociedade igualitária? E a vida modesta de que tanto falava Lula? E a “partilha”? É com o dinheiro dos outros que ela se faz? Para o bem da “partilha”, os companheiros têm que viver com mais e todos outros com menos? Entendi.
“A hipocrisia é o movimento de poder definitivo.
É uma forma de demonstrar que se segue um
conjunto de regras diferentes daquelas
atendidas pelas pessoas comuns”.
(Michael Schellenberger)
Percival Puggina (78)
é arquiteto, empresário, escritor,
titular do site Liberais e Conservadores
(www.puggina.org), colunista
de dezenas de jornais e sites no país.
Autor de Crônicas contra o totalitarismo;
Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões;
A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.