Fernando Fabbrini.
31.01.2020
Semana passada contei aqui o caso do Tamar, das tartarugas e da estratégia adotada na implantação do Projeto. Ilustrei com isso a frase do ministro Paulo Guedes que, com sabedoria e coragem, associou também a pobreza às causas agravantes dos problemas ambientais. O assunto é extenso, delicado e polêmico, e hoje trago mais uma reflexão a respeito.
Nas terças-feiras a Prefeitura de Belo Horizonte faz a coleta seletiva de lixo em alguns bairros, incluindo o nosso. Há anos vejo moradores separando cuidadosamente suas latas, plásticos, embalagens e demais itens não-orgânicos e colocando-os em sacos nas calçadas, bem amarrados. Já virou um bom hábito, felizmente
Saio sempre pelas manhãs – antes da passagem dos caminhões da coleta, com certeza – para a costumeira voltinha no quarteirão sob as ordens do Bruno, nosso civilizado vira-latas que não vira nenhuma. No mesmo horário, até antes do nascer do sol, já circularam pelas ruas outros cidadãos em situações bem diferentes da minha. Às vezes cruzamo-nos, em silêncio. Em outras, sou ainda testemunha do descontentamento velado e dos palavrões dirigidos a eles por moradores e porteiros.
Tais cidadãos anônimos compõem o retrato de nossa vergonhosa miséria social. Na surdina, eles percorrem as ruas antes da coleta, em busca de sobras dos jantares da véspera, de latinhas recicláveis e de um ou outro item capaz de ser transformado em dinheiro. Rasgam os sacos, reviram os dejetos, separam o que lhes interessam e deixam tudo espalhado – lixo novamente disperso pelas calçadas e sarjetas. Trabalho perdido.
Tente dizer a eles que isso não pode, que é feio, que é pouco civilizado, que polui o bairro. Tente abordar um desses cidadãos para uma conversa particular. Experimente dizer a ele que, por exemplo, bandejas de isopor ou garrafas pet largadas na calçada são levadas pelas chuvas e entopem os bueiros, causando enchentes do tipo que estamos vendo nessa temporada. Ele vai rir de você.
Ou pondere, respeitosamente, alegando que ele não deveria contribuir para essa sujeira urbana, uma vez que canudinhos plásticos, igualmente levados pelas águas do verão, vedam as narinas das tartarugas lá do litoral nordestino, matando-as. Ele vai rir ainda mais.
Eis, novamente, a pobreza na sua triste interface com a ecologia. Antes de tudo, essa gente tem fome. E pela escala de necessidades prioritárias do ser humano, o pessoal está primeiramente interessado em saciar a compulsão primitiva. Na sequência, esperam pelo menos descolar algum, vendendo objetos ou sucatas que compõem nosso valioso saco preto de lixo.
O Brasil tem um longo, difícil e complicado caminho até poder orgulhar-se de sustentabilidade, equilíbrio ambiental e outras conquistas essenciais. No centro dramático da questão está o resgate das promessas dos governos populistas que conversaram muito e fizeram pouco, além de se enriquecerem na corrupção.
Será uma nova etapa após a garantia de educação, emprego e renda para muita gente. Aí, sim: depois da dignidade e do prato de comida, cobraremos de todos – democraticamente – a responsabilidade de também cuidar do planeta. Só então poderemos falar de ecologia com realismo, consistência e sem fantasias.
*Fernando Fabbrini é
roteirista, cronista e escritor, com quatro livros publicados.
Participa de coletâneas literárias no Brasil e
na Itália e publica suas crônicas às sextas-feiras no Dom Total