Para melhorar a caridade, retire o governo da função assistencialista
Dominic Frisby
A maior forma de caridade ocorre quando a ajuda dada permite ao ajudado se tornar auto-suficiente.
Assim argumentou o filósofo judeu Maimônides, ainda no século XII.
No entanto, os sistemas de caridade estatal vigentes — eufemisticamente chamados de ‘sistemas de bem-estar social’ — geraram o efeito oposto: eles na realidade criaram dependência.
Logo, é urgente repensar a maneira como estamos atualmente delegando ao estado a tarefa de ajudar as pessoas.
Eis uma sugestão que muitos poderão considerar perturbador e desconcertante: o bem-estar social e todas as variedades de assistencialismo seriam mais eficazes, mais variados, mais difundidos e mais baratos se não houvesse nenhum envolvimento estatal.
As pessoas instintivamente pensam que, sem um programa assistencialista gerido pelo estado, os pobres e os necessitados não seriam cuidados e, consequentemente, seriam deixados à míngua. Com esta inaceitável perspectiva em mente, as pessoas consequentemente se tornam fervorosas em sua defesa de algum programa assistencialista estatal, ainda que possam porventura apresentar reservas à maneira como tal programa esteja sendo gerido pelo estado.
Mas sugerir que o assistencialismo estatal não está funcionando e que ele deveria ser abolido não é a mesma coisa que sugerir que os pobres e necessitados não devem receber cuidados. Com efeito, é justamente o oposto.
A assistência é algo complicado — e não é apenas o assistido o que importa
O fornecimento de serviços assistenciais é um processo delicado, complicado e imprevisível. Em algumas ocasiões, simplesmente dar dinheiro pode realmente levar o assistido ao caminho da auto-suficiência; em outras, não.
Dar dinheiro pode gerar uma redução temporária de seu sofrimento, mas frequentemente gera uma maior dependência e uma menor auto-suficiência.
Em determinadas ocasiões, uma abordagem estritamente local é tudo de que se necessita; em outras, uma abordagem mais prática passa a ser essencial; já em outras, é necessária uma abordagem puramente psicológica ou emocional; e há também ocasiões em que se deve buscar algo que seja mais específico às circunstancias particulares de cada indivíduo.
Por fim, há também ocasiões em que todo o necessário é apenas dar o proverbial “tapinha nas costas”. Diferentes circunstâncias requerem diferentes abordagens e diferentes formas de assistência.
No passado, era assim que era feito. E os resultados eram superiores.
O historiador David Beito, em seu livro “From Mutual Aid to the Welfare State: Fraternal Societies and Social Services, 1890-1967” (Da ajuda mútua ao estado assistencialista: sociedades fraternais e serviços sociais, 1890-1967), mostrou que, independentemente de suas origens, os membros de praticamente todos os grupos étnicos e nacionais criaram formidáveis redes de auxílios individuais e coletivos para ajudar a aliviar a pobreza.
Essas redes de auxílios recíprocos tendiam a ser descentralizadas, espontâneas e informais. Era comum que os doadores e os recebedores fossem pessoas da mesma camada social. Os recebedores de hoje podiam se transformar nos doadores de amanhã.
Segundo Beito:
A ajuda recíproca era algo muito mais predominante do que a ajuda governamental e até mesmo do que as doações privadas. Sua expressão mais básica era a doação informal: os incontáveis e imemoriais atos de bondade entre vizinhos, colegas de trabalho, parentes e amigos. […]
A ajuda mútua e os arranjos informais entre os vizinhos, criados pelos próprios pobres, ofuscavam completamente os esforços das agências governamentais voltadas ao “combate à pobreza”.
Sobre isso, Edward T. Devine, um proeminente assistente social, escreveu um artigo para a revista “Survey” para alertar seus colegas contra a presunção e a mania de grandiosidade que eles próprios se atribuíam. Ele reiterou que milhões de pessoas pobres estavam se mostrando capazes de sobreviver e progredir sem recorrer à ajuda governamental.
Disse ele:
“Nós que estamos engajados nesse trabalho de gerar alívio aos pobres . . . acabamos tendo impressões bastante distorcidas sobre a importância, na economia social, dos fundos que estamos distribuindo ou dos esquemas sociais que estamos promovendo . . .
Mas a realidade mostra que não somos tão indispensáveis assim. . . . Se não houvesse recursos públicos em épocas de enormes aflições e angústias, e essas pessoas tivessem de recorrer às ajudas mútuas e voluntárias, bem como aos auxílios informais feitos por vizinhos, ainda assim a maioria destas aflições seriam debeladas.”
A caridade privada era mais efetiva do que o assistencialismo estatal porque indivíduos contribuindo com seu próprio dinheiro são muito mais incentivados a identificar necessidades genuínas.
Em nível local, é fácil monitorar os auxiliados para garantir que eles de fato estão genuinamente se esforçando para se tornarem independentes. Com efeito, no passado mais distante, grande parte da ajuda fornecida vinha daqueles que conheciam pessoalmente os recebedores do auxílio.
Em contraste, burocracias estatais centralizadas são impessoais por natureza. Elas lidam com milhões de indivíduos que estão na lista dos auxiliados, de modo que é impossível conhecer cada um pessoalmente.
Acrescente a isso o fato de que elas estão distribuindo o dinheiro alheio, extraído coercivamente via impostos, e você concluirá que os incentivos para se determinar as genuínas necessidades desaparecem quase que por completo.
A consequência é que se torna muito mais fácil fraudar o sistema (no Brasil. Os indolentes e os espertalhões sabem como se aproveitar do moderno sistema de assistencialismo público, ao passo que esses mesmos não teriam qualquer chance no sistema privado de antigamente.
A destituição do filantropo
Além de tudo isso, a dignidade do assistido também tem de ser considerada. Ser alvo da caridade alheia pode ser algo degradante e humilhante. Em algumas ocasiões, o anonimato pode ser necessário; em outras ocasiões, não.
Tendo tudo isso em mente, a seguinte pergunta se torna inevitável: como pode alguém realmente pensar que é viável criar um programa de assistencialismo estatal que seja feito de cima para baixo, e imaginar que tal programa irá satisfazer todas essas necessidades distintas e variáveis, de maneira consistente?
E tudo piora. Até agora, falamos apenas do assistido. Temos de falar também do doador, do “filantropo”. Ele também tem de ser considerado.
Compaixão, assistência e caridade são atitudes humanas essenciais. Elas fazem parte da natureza humana. Assim como as pessoas precisam receber, elas também devem dar. Assim como as pessoas precisam ser ajudadas, elas também devem ajudar. Basta apenas ver o olhar de satisfação das crianças quando elas recebem algo para comprovar a evidência desta afirmativa.
Mesmo aquele que talvez tenha sido o mais brutal e sanguinário traficante da história, Pablo Escobar, era conhecido por ser um prolífico filantropo. Ele construiu vários abrigos, igrejas e escolas em sua cidade natal, Medellín, e o fez em uma escala insuperável até mesmo para o governo colombiano.
No processo caritativo, o filantropo também tem suas necessidades. Em algumas ocasiões, ele quer anonimato; em outras, ele quer reconhecimento. Há ocasiões em que ele quer estar envolvido de alguma maneira com o assistido; e há ocasiões em que ele prefere não ter envolvimento nenhum.
No entanto, quando a caridade se torna um programa estatal compulsório, as necessidades do filantropo nem sequer são consideradas. Sua renda é confiscada via impostos e fim de papo. O filantropo não tem nenhuma voz ativa; ele simplesmente não pode especificar a maneira como o dinheiro que ele ganhou e que lhe foi tomado deve ser gasto. Para piorar, o filantropo é, na maioria das vezes, moralmente contra os programas que seus impostos financiam.
A tributação é um ato de doação forçada que destrói a satisfação altruísta que as pessoas normalmente sentem quando fazem doações voluntárias. Ajudar os outros e compartilhar com eles um pouco do que temos é parte de nossa humanidade. No entanto, em um mundo em que o governo se arvorou a responsabilidade de cuidar dos pobres e necessitados, essa compaixão foi removida. Como resultado, o estado hoje detém um quase-monopólio da compaixão.
E qualquer um que não concorde com o conceito de um estado assistencialista inchado e generoso é imediatamente tido como insensível e egoísta.
Como o estado destrói a propensão filantropa das pessoas
Quando você é obrigado a pagar impostos para o governo para que ele forneça serviços assistencialistas (ou mesmo educação e saúde) para os necessitados, a sua capacidade de pagar por estes mesmos serviços para você e para sua família é reduzida, pois agora você tem menos dinheiro.
Após uma parte da sua renda ser confiscada via impostos, torna-se mais difícil para você bancar a escola de seus filhos, seu plano de saúde e seu aluguel. E se torna ainda mais difícil você ser caridoso para com terceiros, o que significa que tal tarefa será delegada com ainda mais intensidade ao estado.
Pior ainda: o próprio fato de você agora ter menos dinheiro significa que você provavelmente também dependerá do estado para determinados serviços. Isso faz com que a rede de dependência cresça cada vez mais.
Mais: se o estado está fornecendo auxílio para os necessitados com o seu dinheiro, então você inevitavelmente se sentirá absolvido da responsabilidade moral de ajudar os outros necessitados.
Simultaneamente, o assistencialismo estatal, além de ser inflexível, é caro. As burocracias que administram os programas de redistribuição de renda sempre são ineficientes e dispendiosas. Pior: elas são propensas à corrupção e ao rentismo (pessoas que manipulam o sistema para ganhos políticos e para proveito próprio).
Se você analisar o que ocorreu ao longo das últimas décadas com itens como tecnologia, alimentação e vestuário — necessidades humanas essenciais que, em grande parte, não são fornecidas pelo estado —, verá que houve uma queda dramática nos preços (mensurados em termos de horas de trabalho necessárias para se adquirir um valor monetário capaz de comprar a mesma quantidade de cada item) e uma sensível melhora na qualidade dos produtos. A concorrência reduziu os custos. No entanto, no campo assistencialista, não houve tal melhoria. Por que não? Porque, graças ao quase-monopólio estatal, não há concorrência nesta área.
A ideia de haver concorrência para serviços caritativos é ofensiva para muitas pessoas. Mas é necessário haver concorrência se a intenção for melhorar a qualidade e reduzir os custos.
O maior gasto em nossas vidas não é, como muitos acreditam, nossa casa ou a educação de nossos filhos. Nosso maior gasto é com o governo. E tal gasto não deve ser mensurado apenas em termos de carga tributária, mas também em termos de regulamentação, de burocracia, de infraestrutura decadente e de serviços pelos quais temos de pagar em dobro, pois os que o estado fornece com nossos impostos são lastimáveis (como saúde, educação e segurança).
Sendo assim, imagine um mundo com um estado mínimo. Repentinamente, este gasto desnecessário seria removido. Sem o custo do estado, teríamos agora mais capital para investir e gastar. As pessoas genuinamente estariam no poder. Nossa capacidade de ajudar os necessitados seria aumentada.
Nossa responsabilidade moral em ajudar os outros seria repentinamente restaurada. E seria aumentada. Simultaneamente, e graças à concorrência, a ajuda que queremos e podemos oferecer seria mais barata, mais variada e de melhor qualidade. Organizações estariam competindo entre si para oferecer mais ajuda a um preço menor. E mesmo organizações que visam estritamente ao lucro estariam propensas a fazer isso porque, no mínimo, seria bom para a imagem delas.
Qual seria o resultado? Auxílios caritativos a custos mais baixos, auxílios caritativos mais eficazes, auxílios caritativos mais variados, mais difundidos e mais flexíveis, que poderiam satisfazer necessidades específicas.
Em suma, uma rede caritativa de maior qualidade e que estimulasse algum retorno dos auxiliados em termos de qualificações profissionais.
Para concluir
Você diz que, sem o estado assistencialista, os pobres e necessitados seriam deixados à míngua? Pois eu digo que eles serão tratados em um padrão muito mais elevado do que aquele vigente hoje.
Afinal, já foi assim no passado.