Prof. Valdemar Munaro
Este nobre e generoso espaço de Percival Puggina me dá a possibilidade de render singela homenagem ao dom e serviço intelectuais prestados a todos, especialmente a nós brasileiros, pelo nosso querido Olavo de Carvalho, recentemente falecido.
O panteão dos escritores e dos intelectuais reúne, segundo Allam Bloom, gigantes e anões. É na garupa daqueles que estes podem vislumbrar coisas impossibilitadas de ver por suas estaturas. Os gigantes, quando tais, se assemelham a desbravadores abrindo sendas nas selvas a fim de outros trilharem caminhos antes não percorridos. Gigantes intelectuais não são muitos, nem frequentes, por isso devemos amá-los, estudá-los, auscultá-los, perscrutá-los e agradecê-los, pois, nos fazem transcender da miopia que nos faz ver bem o perto, mas mal o longe a fim de enxergarmos o que nossa mediocridade impossibilita.
Olavo, como muitos disseram, inclusive nosso presidente, está, certamente, entre os poucos pensadores brasileiros gigantes. Sua obra ultrapassa os limites das paixões, opiniões e/ou modismos que normalmente nos aprisionam.
Pode-se dizer que ele foi e é uma surpresa intelectual brasileira, um milagre, pela mesma razão de estarmos imersos e acostumados às mediocridades culturais rotineiras que são incapazes de gerá-lo. Inegável dizer que sua atividade educativa e filosófica soergueu nossa qualidade investigativa racional e abriu brechas nas nossas discussões e pensamentos há muito cristalizados. Nisso, foi um autêntico autor de nosso tempo, polêmico, sim, mas, em vista de nossa condição ‘cativa’, ele sacudiu o hábito no qual nos havíamos acostumado ante o invernoso e sombrio território educacional instaurado em nosso país.
Sabemos que todos os grandes escritores contêm uma parcela de substancialidade e outra de acidentalidade. Os elementos acidentais, no entender de Aristóteles, são aqueles penduricalhos ou aspectos que só existem enquanto estiverem enxertados na substância que os sustenta. Os acidentes são como sobras de banquetes, bagaços de ofício; são reais, mas não têm vida própria, subsistem e existem na medida em que estão unidos à substancialidade. De tal forma que, na obra de Olavo, por exemplo, há um lado ou aspecto jornalístico e político que pertence à sua atividade mais acidental e diz menos sobre o seu núcleo substancial. Este se localiza nas suas obras mestras e nas veias do seu trabalho elaborado através dos cursos que ministrou ao longo dos seus últimos vinte anos.
Nenhum autor, assim como nenhuma pessoa humana é admiravelmente integral, perfeita, completa. Mesmo nas obras de Dante, Tomás de Aquino, Shakespeare, Cervantes, Balzac, Dostoievski, Tolstoi, Machado de Assis e de tantos outros, podemos encontrar sabugos, palhas e não só grãos. Neles também temos flashes de literatura secundária, embora a substância esteja lá, pois sempre o substantivo é que dá existência aos adjetivos, não o contrário. ‘Até o grande Homero tinha cochilos’, justificou certa vez S. Jerônimo quando abordado sobre a leitura que fazia das obras heréticas de Orígenes. Olavo tinha o lado polêmico e irreverente, mas isso não fazia a parte central do conteúdo de sua obra.
Dotado de inteligência viva, sagaz e de prodigiosa memória, Olavo possuía um conhecimento vastíssimo sobre quase tudo o que constitui saber humano. Seu processo formativo percorreu etapas de autodidatismo, disciplina e método de estudo, leitura e investigação extraordinárias e pessoais. Buscou lugares onde pudesse encontrar conhecimento e sabedoria. Quem o ajudou inicialmente não foram as universidades, mas o padre Stanislavs Ladusãns, nascido na Letônia e jesuíta, membro da Academia Brasileira de Letras, que ministrava cursos livres de filosofia no Rio de Janeiro. Isso indica outra coisa: não sempre são as universidades que formam intelectuais e cientistas. Na Idade Média, por exemplo, não foi a Universidade de Paris que formou ou elevou Tomás de Aquino ou Duns Scotus ao patamar de grandes filósofos e mestres, mas foram justamente Tomás de Aquino e Scotus que elevaram o nível e a fama daquela universidade. As personalidades humanas normalmente se enchem mais de sabedoria e ciência não em espaços e lugares de algazarra e publicidade, mas no recôndito silêncio da própria cela ou casa. Os exemplos são inúmeros para assegurar que nem sempre as universidades são lugares de formação e geração de ‘intelectuais’ e ilustres escritores.
Olavo discorria com desenvoltura e segurança sobre quase todas as áreas do conhecimento humano. Abordava temas, prolixos ou não, relacionados à literatura, à ética, à filosofia, à religião, às ciências em geral, à história, à teologia, ao cinema, às artes e à estética, à política, à economia, à psicologia, aos problemas relacionados à ordem mundial, a autores vivos ou mortos do cenário contemporâneo, etc…
Nem mesmo em grandes autores da história da filosofia como Fraile, Reale, Copleston, Abbagnano, Urdanoz, E. Brehier, Gilson e outros, encontrei tanta lucidez e síntese compreensiva para entender o pensamento dos filósofos mais representativos de cada período quanto encontrei nas preleções apresentadas por Olavo em sua História Essencial da Filosofia e em outros seus textos relacionados a ela. Olavo também esmiuçou, sobretudo dos modernos e contemporâneos, um quadro de contradições e enganos que muitas das doutrinas daqueles autores contêm. Ousou, sem medo, denunciar vigarices e charlatanices de pensadores e/ou filósofos como R. Descartes, Lutero, Hobbes, Maquiavel, Rousseau, Kant, Hegel, Darwin, Newton, Marx, F. Engels, Freud, Nieztsche, Augusto Comte, Antônio Gramsci, M. Foucault, Heidegger, os membros da escola de Frankfurt (Lukács, Marcuse, Horkheimer, Adorno, Habermas, E. Fromm), Wittgesntein, Derrida, Deleuze, Sartre, Noam Chomsky, Richard Dawkins e muitos outros. Na atualidade, tornou-se o maior estudioso e intérprete do marxismo, pois dedicou particularmente parte de sua vida para ler e analisar a obra completa de Marx, de Lenin e de todos os seus principais asseclas.
Entretanto, sua maior, mais contundente e mais impactante provocação, entre nós, foi a denúncia pública do estado medíocre e apodrecido com que a vida intelectual brasileira se encontra tanto no interior das universidades quanto nas fontes editoriais e nos seminários de formação teológica e filosófica de muitas de nossas instituições eclesiais. Não sabíamos ou não tínhamos noção do quadro doloroso em que vivíamos em nossa vida cultural e formativa. Seu foguete demolidor dirigiu-se em primeiro lugar à turma representada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Basta, para se ter uma ideia, conferir a polêmica com os editores da revista ‘Ciência Hoje’ no livro ‘Aristóteles em Nova Perspectiva’. Sua denúncia nos mostrou que o ensino da filosofia e de outras áreas do saber está integralmente preso ao ditame político ideológico esquerdista presente e atuante em quase todas as faculdades ‘humanistas’ do Brasil, especialmente da USP (cf. Jardim das Aflições), da PUC de SP e do RJ (leia-se O Imbecil Coletivo I e II). A mesma denúncia mostrou quão envergado e deprimente está o quadro de nossas universidades, de nossas escolas, de nossos meios editoriais, de nossos jornais e meios de comunicação, quase totalmente contaminados de marxismo e, sobretudo, de desonestidades intelectuais. Nem mesmo a teologia ficou livre desse imbróglio. Impregnada de ‘libertação’, penetrou a alma de nossos estudantes, futuros prelados e pastores. Segundo ele, essa teologia, com raízes no Vaticano II, tornou-se prisioneira da mesma vertente.
Exemplos são os mais conhecidos teólogos brasileiros desse período: Leonardo Boff e Frei Betto. Por muito tempo foram inquestionados, mas Olavo os desqualificou sob o ponto de vista intelectual e reafirmou sua tese de que o estrago causado por essa teologia para a Igreja ainda não foi avaliado nem suficientemente medido.
Em razão de sua atividade como escritor e professor, pudemos, por meio do seu estímulo, ter acesso a obras antes sequer mencionadas nos meios editoriais e universitários. Temos hoje a chance de ler autores como Eric Voegelin, Mortimer Adler, Russel Kirk, Roger Scruton, Leopol Szondi, Nortrop Frye, Bernanos, Newman, I. Conrad, Victor Frankl, Andrew Lobaczewski, René Girard, Thomas Sowell, Xavier Zubiri, A. D. Sertillanges, Chesterton, Theodore Dalrymple, Louis Lavelle, B. Lonergan, Mário Ferreira dos Santos, Otto Maria Carpeaux, Vicente Ferreira dos Santos, Ângelo Monteiro, Meira Penna, Gustavo Corção, Leo Strauss e muitíssimos outros. Em seus cursos, Olavo chamou-nos a atenção para o valor atualizado da filosofia encontrada nas obras de Aristóteles, Platão, Agostinho, Tomás de Aquino, S. Boaventura, Duns Scotus, Husserl, Leibniz, Schelling (e outros muitos), dos grandes autores da literatura e historiadores (como Walter Scott), escritores contemporâneos e modernos, sejam eles do Brasil ou do mundo. Nosso país estava fechado à vastíssima obra de valiosos escritores simplesmente desconsiderados porque não eram, nem são de esquerda.
Segundo Olavo, o pensamento brasileiro e mundial contaminou-se do que Julien Benda designou ‘traição’, isto é, de emoção política que penetrou a mente de nossos intelectuais e deu vazão ao ‘leimotiv’ estampado na filosofia de Marx: ‘o mundo não é para ser conhecido e contemplado, mas, antes, para ser transformado’. Assim, o terreno das ciências deixou de ser laboratório de pesquisas e de conhecimentos para se tornar um campo de batalha política. Nossa vida educacional foi engolida pela ansiedade primária de ‘transformação’ do mundo social, político, cultural, econômico e religioso. Estamos, pois, encharcados de ‘anseios revolucionários’. Por causa disso, segundo Olavo, não há mais, entre nós, possibilidades de debates intelectuais honestos e científicos já que as paixões embotaram e distorceram nossa razoável racionalidade, terminando por prevalecer sobre a objetividade dos fatos e resultados. As discussões ligadas à política estreitamente ligada à sua militância, se locupletaram e substituíram-se à busca honesta, livre e amorosa pelo saber. Estamos entre os últimos lugares do mundo nos rankings educacionais. Tal é a tragédia que se abateu sobre a educação brasileira, sobre nossas universidades, sobre nosso mundo político, religioso e intelectual. Para servir de exemplo, foi recente a observação de um professor que avaliou o trabalho de conclusão de curso (feito a partir das obras de Olavo de Carvalho) de um estudante de filosofia: sua pesquisa não deveria ter sido feita sobre esse autor porque o mesmo não pertence ao quadro dos professores da academia filosófica universitária vigente. Ora, o argumento é fajuto, rasteiro e desonesto. Com efeito, se fosse correto, deveríamos excluir filósofos que não foram professores universitários, entre eles, K. Marx, Engels, Rousseau, Saramago, Gabriel Marcel, Kierkegaard…. e muitos outros. Como se conclui, prevalece ainda aqui e alhures a militância sobre a lógica, a verdade e a racionalidade.
Se o conteúdo central do trabalho de Olavo é a afirmação da unidade do conhecimento na unidade da consciência humana, resulta que esse princípio unitário essencial, é a condição sem a qual seríamos ou estaríamos desintegrados de nós mesmos e do mundo em que habitamos. A desintegração de nosso ser, portanto, começa na ausência da verdadeira percepção de nosso eu e da realidade na qual ele está inserido. Em outras palavras, toda vez que elaborarmos conhecimentos, doutrinas ou ideias nas quais nós mesmos não estivermos dentro delas, significa então que nos colocamos fora da própria doutrina que geramos e, dessa forma, instauramos em nossa atividade intelectual aquilo que Olavo designou ‘paralaxe cognitiva’, isto é, um conhecimento ou filosofia ficcional que conduz o próprio pensador que a produz (com seus discípulos, por consequência), à esquizofrenia de si mesmo, à loucura, à estupidez, à psicopatia. O que pode salvar nossas mentes das loucas ficções é sempre o esforço honesto e sincero de retorno à observação do mundo real das coisas e do nosso eu real. A nossa inteligência é que se alimenta do ser e não o inverso. Todos os idealismos são ficcionais e terminam por levar seus condutores e protagonistas a tentativas de forçosa e violenta implementação dos mesmos, na vida das pessoas. As experiências mostram que tais idealismos conduziram seus agentes e vítimas a experiências tristes, terríveis e chocantes que os totalitarismos históricos do último século testemunharam. Como disse Eric Voegelin, o ‘iletramento espiritual’ das elites intelectuais do mundo moderno e contemporâneo engendrou e legitimou o advento de psicopatas que, alçados a algum poder, foram capazes de, sem escrúpulos e remorsos morais, matar e ferir aqueles que bem quisessem. O homem que eliminar Deus da sua existência terminará por colocar-se no seu lugar e agirá como se divino fosse.
A despeito de todas as opiniões divergentes quero expressar minha gratidão pelas páginas que Olavo escreveu e pela intrepidez com que levou adiante a defesa de valores e princípios nutrientes daquelas almas que desejam crescer e viver na retidão, na sabedoria, na verdade. Muitos brasileiros encontraram em Olavo o alimento intelectual que as universidades não ofereciam.
Ele os nutriu e os ajudou a viver melhor. Vinculada à grande tradição metafísica de Aristóteles, de Tomás de Aquino e às fontes judaico-cristãs, a filosofia de Olavo de Carvalho guarda pilares da sabedoria que já fora cultivada e buscada pelos gregos, mas que foi encontrada na grande herança cristã. Seus textos e preleções contêm aqueles valores e princípios que sustentaram as nobres e grandes civilizações. Nesse sentido colaborou muito para o bem do nosso Brasil e do mundo. O Brasil não é só futebol, carnaval, samba ou outra marca. Agora, sobretudo, é também Olavo Luiz Pimentel de Carvalho. Dele nos orgulhamos.
O grande africano Agostinho iniciou suas ‘Confissões’ com a célebre frase referindo-se a Deus: “Fecisti nos ad te e inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te“. Traduzida significa “Fizeste-nos para ti e inquieto está nosso coração enquanto não descansar em Ti”. A afirmação de Agostinho é que Deus não nos fez para o abismo intragável e niilista, mas para estarmos com Ele. Nossa origem será, portanto, também nosso destino. Carregamos em nossa alma a fonte de nossa origem, por isso sabemos qual será nosso destino. Olavo tinha consciência de sua origem e sabia do seu destino. Em recente entrevista disse não temer a morte. Obrigado Olavo, pela confiança que nos transmitiu e pelo bem que nos fez. Que o Cristo Ressuscitado o tenha para sempre na sua companhia.
Santa Maria, 10/02/2022.
*O autor é professor de Filosofia na UNIFRA.