DIÓGENES, O CÍNICO

Irm Ambrósio PetersAs doutrinas e os princípios filosóficos dos tempos áureos da Grécia Antiga foram puros porque gerados de inspiração e esforço puros, por isso ainda hoje são a base fundamental do pensamento moderno.

Os postulados maçônicos abrangem um largo espectro de idéias calcadas em princípios fundamentais, constituindo aquilo que, de modo mais amplo, denominamos o ideal maçônico. Esses princípios fundamentais sempre se voltam em direção ao livre pensamento, ao racionalismo ou iluminismo, ao adogmatismo e à formação do homem integral.

O homem integral é o homem a agir como catalisador do bem e do progresso nos meios sociais em que se exercita e vive; é a meta última das atividades maçônicas. Esse homem que a Maçonaria deseja formar teve seus antecessores em plenitude nos forjadores da filosofia da Grécia Antiga, quando novas e perturbadoras idéias como que explodiram na antiga Hélade por volta do século V a.C.

As doutrinas gregas dos tempos áureos se apresentaram tão fundamentalmente puras porque geradas de esforços e inspiração puros, ainda que desenvolvidos sobre quase fugazes princípios semi-emitidos e surgidos no contexto de povos ainda pobres de idéias superiores ou metafísicas, como os egípcios, caldeus, povos mesopotâmicos em geral, e os hindus.

Na busca desses idealistas gregos, deparamos-nos com DIÓGENES, o Cínico, e nos resolvemos pelo estudo de sua pessoa e personalidade. Diógenes, o popular homem da lanterna, do caneco, do menino, do tonel, episódios menores de sua vida, mas que lembram os seus ideais de completo despojamento, e que rememoraremos mais adiante com mais minudências.

Dizemos Diógenes, O Cínico, para distinguí-lo de outros tantos “DIÓGENES”, como o de Laerte, o de Babilônia, o de Apolônia, o de Enoanda, todos filósofos de renome também, embora não tão famosos e nem tão célebres como o nosso “O Cínico”.

Explicamo-nos. Os gregos costumavam adotar apenas um nome, e geralmente o nome do avô, sem nenhuma outra identificação nominal. Imagine-se a confusão daí gerada. Para contornar esse inconveniente, costumava-se acrescentar ao nome o da cidade de nascimento (de Laerte, de Apolônia, etc), ou outro apodo, por vezes carinhoso, e por vezes depreciativo. Outras vezes, mais raras, como no nosso caso, um qualificativo relacionado com a doutrina professada ou praticada pelo titular. Diógenes professava e praticava o cinismo filosófico, e daí o cognome “Cínico”.

Mas, porque comentar Diógenes, um filósofo grego da antiguidade clássica em uma revista Maçônica? Vê-lo-emos a seguir.

A essência da filosofia cínica está admiravelmente definida no seguinte diálogo, que Sócrates manteve com um dos seus discípulos mais recalcitrantes, sobre o problema do prazer, um dos temas mais constantes na cultura grega:

Sócrates: Achas que o filósofo deve apegar-se aos prazeres da mesa e do vinho:

Simas: Está claro que não.

Sócrates: E será justo que se preocupe com os outros meios de favorecer o corpo?

Simas: De modo algum.

Sócrates: E será justo que se preocupe com os outros meios de favorecer o corpo, por exemplo, a aquisição de roupas caras, sandálias ou outros adornos? Em vez de se ocupar com essas coisas, não será mais razoável que despreze tudo o que for além das necessidades da natureza?

Simas: Acho que o verdadeiro filósofo deve desprezá-las.

Nessas simples perguntas e respostas, se sintetiza não somente a filosofia cínica, mas também o verdadeiro espírito da filosofia grega quando no seu auge. Antístenes, mestre de Diógenes, absorveu a teoria da filosofia cínica integralmente no seu todo, e por isso se tornou, como disse Will Durant, um verdadeiro franciscano sem teologia em pleno coração do florescimento grego. Antístenes dizia com integral convicção que “não possuía para não ser possuído”.

Durante a vida de Sócrates, ele foi um de seus alunos mais aplicados e assíduos. Depois da morte de seu mestre, limitou-se também a ser apenas um mestre, e escolheu para local de sua atividade um ginásio conhecido como “Cinosarges” (do grego “Kynosargos”, traduzível por “indolência de cão”). O nome faz referência aos alunos que o freqüentavam, gente de classe inferior, estrangeiros e bastardos, gente que os da alta classe consideravam vadios como um cão.

A identificação da filosofia de Antístenes como “cinismo” parece relacionar-se mais ao nome de “Cinosargos” do que propriamente com a vida de cão que seus adeptos levavam. Mas tanto uma como outra derivação não lhe alteram o sentido.

Antístenes trajava como um operário, ministrava seus ensinamentos de graça e preferia buscar seus alunos entre as pessoas da classe pobre; expulsava de suas aulas aqueles que não se mostrassem dispostos a continuar a viver como pobres, negando suas origens.

Diógenes, quando pleiteou seu ingresso na escola de Antístenes, foi simplesmente recusado e até insultado por aquele mestre que ele tanto admirava. Continuou insistindo, perdoou os insultos, e conseguiu ser admitido, finalmente, e em compensação fez a doutrina cínica conhecida e popular em toda a Hélade.

Diógenes, banqueiro na cidade de Sínope, sua cidade natal foi, por falência em sua profissão, que também era a de seu pai, levado a uma situação financeira tão grave que o obrigou a mendigar para sobreviver. Assim, nessa situação de penúria extrema, lhe soou agradavelmente ouvir de seu admirado Antístenes que a mendicância e a pobreza se constituíram em parte essencial da virtude e da verdadeira sabedoria. No início de sua carreira de sábio, com sacola e bordão de mendigo, tendo por moradia os pórticos dos Templos e por abrigo um tonel achado nas escadarias do templo de Cibele, andava pela cidade de Atenas e vizinhanças.

Comer o que encontrava ao acaso, e comer onde encontrava, fazer suas necessidades físicas e mesmo o ato de amor, que considerava apenas mais uma necessidade física, sem olhar para quem estivesse ao seu derredor, era uma tentativa de apagar sua inveja da vida simples dos animais, que queria imitar. Conta-se que certa vez, ao encontrar um menino a beber água com a concha da palma da mão, tomou-o como lição e achou um luxo excessivo a caneca que portava. Jogou-a fora.

Empenhava-se em não fazer mal a ninguém, mas se negava terminantemente a obedecer às leis e se proclamava cidadão do mundo. Causava-lhe ansiedade ver a humanidade dividida em grupos antagônicos formando estados e edificando cidades. Como cidadão do mundo, o primeiro cosmopolita de que se tem notícia, viajava despreocupadamente de cidade em cidade, e certa vez o encontramos vivendo e difundindo seus princípios na cidade de Siracusa, na magna Grécia (sul da Itália atual).

Em uma de suas andanças, foi presa de piratas que o venderam a um cidadão de Corinto chamado Xeníades. Este, ao lhe perguntar o que sabia fazer, recebeu a resposta: Sei governar homens”. Xeníades fê-lo tutor de seus filhos, governante de sua casa e administrador de seus bens, e ele se desincumbiu tão bem de sua tarefa que seu amo o apelidou de “meu gênio bom”.

A esta altura, abandonara obviamente sua vida de mendigo, mas continuou com sua vida simples e sem exigências, divulgando seus princípios filosóficos cínicos; tornou-se um dos homens mais populares da Grécia.

Apesar de todo esse desprendimento externo, apenas aparente em parte, era na realidade um “poseur” Parecia saborear sua própria celebridade e orgulhar-se ao extremo de sua incrível capacidade de argumentar, constando que jamais perdera uma discussão. Usufruía um humor ferino e de uma presença de espírito imperturbável.

Certa vez, vendo uma mulher prostrada em oração com a cabeça ao nível do chão, chegou-se a ela, interrompeu-a em seu ato religioso e lhe disse: “Não tens medo de que possa estar atrás de ti um desses tantos deuses que dizem haver por aí? De outra vez, ao ver o filho de uma cortesã atirando pedras contra uma multidão, lhe disse: “Cuidado, não vás acertar teu pai”.

Os episódios mais popularmente conhecidos de sua vida são os do sol e da lanterna.

Conta-se que certa vez Alexandre, o Grande, da Macedônia, ao andar pelas ruas de Corinto, atraído pela sua fama, se postou diante dele no momento em que tomava seu banho de sol. Ao lhe dizer o Rei “Eu sou Alexandre, o Rei”, Diógenes lhe retrucou: “Eu sou Diógenes, o Cão”. Alexandre, impassível, continuou: pede o que quiseres que imediatamente to concederei e imediatamente Diógenes lhe disse: “Devolve-me aquilo que não podes dar, o sol que estás encobrindo”. Alexandre ainda lhe teria dito: “Se eu não fosse Alexandre, o Rei, quereria ser Diógenes”. Não sabemos se Diógenes lhe devolveu o elogio.

Segundo a história, os dois morreram no mesmo dia, no ano de 323 a.C.: Alexandre aos 33 anos, em Babilônia, e Diógenes, aos noventa anos, na cidade de Corínto. Os coríntios o homenagearam colocando um cão de mármore sobre seu túmulo, e os habitantes de Sinope, de onde havia sido banido, lhe ergueram um monumento.

A filosofia cínica de Antístenes, adotada integralmente por Diógenes, considerava a metafísica como um jogo intelectual de palavras inúteis, e o estudo da natureza na busca de uma explicação para a existência do Universo, como atividade inútil e supérflua. O estudo da natureza somente teria sentido se encetado como busca de um guia para uma vida virtuosa e simples. A única maneira coerente de viver seria buscar permanentemente a felicidade, não através do prazer, mas sim levando uma vida simples, digna e natural. O prazer somente seria válido se pudesse ser usufruído sem causar remorsos, e nunca às custas da infelicidade do próximo.

Dizia serem efêmeros todos os prazeres, exceto aqueles que pudessem ser atingidos através de uma vida modesta e virtuosa. A riqueza destrói a paz, e a inveja é a ferrugem que corrói a alma. Os deuses concederam ao homem uma vida fácil que ele corrompeu com a sarna do luxo.

Para os cínicos, tudo o que na religião passasse da prática da virtude não seria mais do que grosseira superstição. A virtude consiste em comer, possuir e desejar somente o indispensável; beber, apenas água.

Para Diógenes, o maior dos bens sociais, o supremo ideal, seria o livre pensamento, a liberdade de expressão, e uma das maiores qualidades do homem, não fazer mal a ninguém e não ter inveja de nada. O Supremo Bem, o maior dos bens, seria a virtude, uma virtude atingida não pelo usufruto dos prazeres, mas através da prática de uma vida simples e natural.

A filosofia cínica fez parte do movimento de “volta à natureza”, que se desenvolveu em Atenas, no século V, como revide a um sistema cultural complicado que desvirtuava a vida e a tornava ansiosa, competitiva e imoral.

Nestes últimos parágrafos transparece claramente um daqueles incontáveis belos exemplos que nos vieram dos sábios gregos. A filosofia cínica propugnava uma concepção de vida simples e sem luxos, baseada nas leis naturais, ou seja, uma vida de “bons costumes”. Viver sem remorsos de ter causado mal a um semelhante espelha um sentimento de fraternidade e de solidariedade, poucas vezes encontrado em nosso sistema cultural moderno.

Nas concepções filosóficas do cinismo, sobressaía um sistema de livre pensamento como o maior bem social da humanidade. Um livre pensar sem obstáculos e sem peias, capaz de levar o homem a buscar por si próprio a sua própria verdade.

John Toland, que nos parece particularmente o grande idealista na base da fundação da Grande Loja da Inglaterra em 1717, expunha em seu “Pantheisticus” exatamente isso: uma vida de fraternidade entre homens livres de pensamento e de bons costumes, capazes de em tempo futuro colaborar na redenção humana.

A Maçonaria dos homens superiores, da elite pensante e compenetrada do seu papel na sociedade, abraçando esse supremos ideais de Diógenes, se constituiria em uma alavanca eficiente para o progresso da humanidade.

Os sábios gregos no seu conjunto, e muito particularmente Diógenes, nos deixaram marcantes exemplos de vida e de princípios filosófico-morais, que em seu tempo praticaram e defenderam com ardor. Desde a primordial escola de Mileto, que teve em Tales um expoente excepcional, até os últimos mentores do já no ocaso intelectualismo grego do final do século primeiro antes de nossa era, nenhum deles fugiu à regra. Todos seguiram na vida prática os princípios que pregavam ou ensinavam em suas escolas.

Diógenes era visto com alguma freqüência, ao que diz a tradição, percorrendo as ruas da cidade em plena luz do dia, portando uma lanterna acesa. Ao ser inquirido sobre o motivo dessa sua aparente extravagância, sempre respondia secamente: “Estou a procura de um homem”.

Semelhante atitude tem um sentido mais profundo quando a ligamos ao ambiente social que se formara na Grécia do seu tempo. Imperavam a corrupção e a venalidade, a começar pelas classes consideradas inferiores. Os varejistas em geral, os padeiros, os açougueiros, os peixeiros, viciavam as balanças, roubavam no peso e no troco, adulteravam o produto. Mas a venalidade também atingia em alto grau as classes mais elevadas, principalmente a dos políticos. Entre estes não se encontraria alguém que ainda não tivesse sido envolvido em algum caso de roubalheira e corrupção. (Ah! Brasil). Um indivíduo honesto e sério era considerado uma “avis rara”.

Era provavelmente por isso que Diógenes, com seu humor ferino e sua lanterna, dizia estar procurando um homem. Para o Mestre, ser homem, no sentido mais nobre desta palavra, era viver uma vida virtuosa e de acordo com as leis naturais, respeitando sempre os direitos do próximo. Ser homem assim deve ter sido naquele século uma
excepcionalidade, aliás, como também o é no Brasil de hoje. Os séculos, parece que, não ensinaram muita coisa ao homem, apenas cobriram as suas ações nefastas com sua pátina.

Quantos de nós, Maçons da Era Moderna, podem se enquadrar nos princípios da virtude praticados e propostos por Diógenes? Quantos de nós são verdadeiramente livres de pensamento? Quantos de nós são verdadeiramente livres e de bons costumes?

Para Diógenes, a melhor sociedade seria aquela que não tivesse artifícios nem leis, ou pelo menos que estes se reduzissem a um mínimo indispensável. Os gregos sorriam dos cínicos e os toleravam tanto quanto os santos eram tolerados na idade medieval, ou tanto quanto nossa sociedade política moderna, em nosso País, encara com mal disfarçado sarcasmo os homens públicos sérios.

Os cínicos, depois de Diógenes, se transformaram em uma ordem religiosa sem religião, viviam como pobres e ocupavam seu tempo como professores, e não tinham lar. Provavelmente a influência de sua doutrina, de seu modo de viver, terá reaparecido entre os essênios.

Os essênios, por sua vez, parecem ter influenciado diretamente o Cristianismo em sua primitiva e pura concepção. Os cristãos, tal qual os essênios, tal qual os cínicos de Diógenes, consideravam este mundo como um vale de lágrimas corruptor das virtudes com seus efêmeros prazeres.

Diógenes, um religioso sem religião, um cristão sem cristianismo, um essênio sem o essenismo, um maçom sem maçonaria.

 

 

Irm Ambrósio Preters

A R L S “Os Templários”
GOB/Paraná
Or de Curitiba – PR.
Escritor, Historiador Filosofo e Livre Pensador.
O PRUMO – Nº 84

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