FRATERNIDADES BARATEADAS

Valdemar Munaro

26/11/2020

 

Doutrinas mesclaram-se às mentes cristãs e baixaram o preço das exigências intrínsecas à imitação e ao seguimento de Cristo. Tais doutrinas enganosas ensinam eficazmente a mediocridade àquelas mentes quando diminuem ou abatem o custo das virtudes e da batalha contra o pecado pessoal que a fé supõe. O aroma desse batismo em águas mornas (‘nem frias, nem quentes’), tem o perfume eclético do sincretismo ajustado aos comportamentos facilitados que a moda social e cultural aplaude e aprova. Salieri, pretenso padroeiro dos compositores medíocres, invejava a genialidade de Amadeus Mozart. A mediocridade sempre ronda a profundidade do coração e da mente dos homens e é difícil dela se libertar.

Pelo sendeiro da mediocridade a Igreja cristã também se vergou para se refestelar na feira das iguarias convencionais. Ali participa frequentemente do banquete dos enredos políticos, da corrupção, da superficialidade, das decadências éticas e estéticas, das oratórias ocas e tresloucadas e, muitas vezes, obtém igual postura e alimento em quitandas que oferecem frutos cultivados em jardins que pertenciam, até há pouco, a inimigos.

Os partidos e seus agentes políticos fazem isso: não temem trair até mesmo a alma e os princípios assumidos, se preciso for, para angariar um naco de poder. Teologias da libertação rosnam, mas agem da mesma forma. Nelas não há mais o temor nem o tremor. Fazem o triste serviço da mediocrização da vida cristã pelo incitamento dos fiéis ao engajamento político partidário. E ao se inserirem nessa batalha política, se creem testemunhas radicais do Evangelho. Na verdade, temperam a vida cristã de comportamentos medíocres reduzindo-a à luta pela justiça e impedindo crentes de progredir no caminho da santidade. Estagnando e enquadrando a vida cristã no nível do comportamento ético, obrigam fiéis a se contentarem com as saladas postas à venda ou à disposição nos mercados espirituais do mundo.
O iluminista Emanuel Kant (1804), embora protestante e pietista, considerava Jesus Cristo apenas um homem ético.

A carta, ao amigo Lavater, datada em 28 de abril de 1775 afirma que o erro dos evangelistas e apóstolos foi ter transformado o humano Jesus em um ser divino para ser adorado e amado. De Cristo, devemos, segundo Kant, ficar somente com seu excelente testemunho moral. Nada mais. Com efeito, o ‘Santo do Evangelho’ (como designa Jesus), foi simplesmente um homem que viveu ideais morais já presentes à natureza racional da humanidade. Não haveria, portanto, nada de novo na vida de Cristo. Só excelência moral. Consequentemente, a vida cristã, para Kant, se reduz a uma só tacada: prática ética. O dever moral a ser praticado e que a razão pede para cada pessoa fazer, é o máximo de exigência a ser vivido. Desse modo, todo aquele que vier a viver os padrões morais já estabelecidos pela razão, estará realizando também os ensinamentos e as práticas mais altas da vida humana e cristã.

Não há lugar para santidades no interior da doutrina kantiana. Não há ali brechas para o amor incondicional, para o perdão, para a misericórdia, para a generosidade, para a vida sob e do espírito. A máxima virtude é o dever moral. Não é possível, pois, com filosofia kantiana, compreender Abraão, o profeta Isaías, Jesus Cristo, Paulo de Tarso, Francisco de Assis, Maximiliano Kolbe, Ir Dulce, Madre Teresa de Calcutá e tantos outros semelhantes.

O marxismo, por sua vez, a mais devastadora e sedutora das doutrinas em voga, fez enganosamente crer a muitos que a vida cristã é só uma espécie de luta e empenho dos humanos por justiça (histórica e política). A mistura da fé cristã com a fé marxista e vice-versa se tornou um negócio fácil e escorregadio. O sentimento de justiça que nasce espontaneamente na vida de alguém oprimido ou injustiçado se agrega ao apelo pela extirpação desse mal. Quem, em algum instante da própria vida, não passou por algo semelhante? Quem não foi maltratado ou humilhado alguma vez? Revoltar-se contra a vida ou contra alguém é coisa fácil. Marx explorou o fácil. Difícil é o movimento humano contrário. Reivindicar justiças e reparações aos infortúnios e injustiças sofridas é um passo natural e espontâneo. Sobrenatural é superar a escada ética, ultrapassá-la é o difícil.

Aproximar, portanto, a vida de Cristo a personalidades como a de Che Guevara, Símon Bolívar, Tiradentes e outros, é desferir uma punhalada na essência e no paradoxo da vida cristã, é uma ofensa teológica, é uma negociata a preço de banana do suplício do Crucificado, é um chacotear e chicotear o amor, é um preferir a violência de Barrabás (o guerrilheiro zelota), ao sacrifício da uma vida que estancou a morte e redimiu criminosos.

Penso e desconfio que a nevralgia que medra a carta encíclica, Fratelli Tutti, está justamente no barateamento que ali se estampa quando o papa Francisco usa o belo conceito de ‘fraternidade’. O texto (sem negar a boa fé e as louváveis intenções do pontífice), baixa e rebaixa a exigência cristã no que diz respeito à vida fraterna e traz para a panela da convivência humana as regras e princípios da boa vizinhança. O teólogo protestante, Dietrich Bonhoeffer (sacrificado em campo nazista), no texto ‘Vida Comum’, diz que há um olímpico jeito de matar a novidade da fraternidade cristã: é torná-la palatável, isto é, política e afetiva.

Os laços tribais, afetivos, familiares ou políticos não constituem ainda a essência da fraternidade cristã. O papa crê poder semear fraternidades e solidariedades do mesmo modo como se semeiam trigo e/ou centeio: jogando ao vento as suas sementes. ‘Fratelli Tutti’ é frase de Francisco de Assis, santo que via tudo como obra de Deus. Para o Poverello, todos eram irmãos, inclusive o sol e a lua. A coisa, como se vê, é muito mais complicada. Tratar inimigos como irmãos e tratar irmãos como inimigos são duas visões e/ou atitudes irreconciliáveis e incompatíveis. Elas têm raízes e motivações completamente distintas. Casá-las: that is the question!!!

Já o antigo socialista Saint Simon (1825), escrevera um texto chamado ‘Novo Cristianismo’ no qual selecionara passagens evangélicas passíveis de serem vividas pelos humanos e eliminara tudo o que, segundo sua visão, dificultasse sua compreensão e sua prática. Sua intenção foi tornar fácil o difícil. Enfim, fez o trabalho de mediocrizar o Evangelho de Cristo.

Um dos pilares da vida cristã é o amor incondicional: uma forma de amar que não se acha nos códigos penais, nem na filosofia de Kant, nem na sabedoria dos gregos, nem no budismo, nem no hinduísmo, muito menos no islamismo e no judaísmo. É a forma de amar que só Jesus Cristo viveu. É ali que se encontra uma das provas mais contundentes de sua divindade. Ninguém amou como Ele. Ninguém jamais ensinou ou praticou amor igual. A fraternidade cristã não é uma conquista humana, não é um afago político, não é um bem-estar social. É um tipo de amor que é capaz de dar a vida até mesmo pelo inimigo. “Amai os vossos inimigos” é o mandamento. Mas inimigos não são os que nós odiamos. São, antes, os que nos odeiam. E amar os que nos destroem, fazer o bem aos que nos maltratam e nos ofendem, é um amor impossível de ser vivido ou praticado por humanos com força só humana. Ninguém ama desse amor sem auxílio divino, pois só Deus é capaz de amar inimigos.

Ora, está aqui o ponto nevrálgico da autêntica fraternidade cristã. Ela não é uma construção puramente humana. Ela vem de um amor impossível à vontade humana e todo aquele que não for capaz desse amor não pode sair por aí convencido, nem proclamando que o vive cristãmente. “O amor, disse León Bloy, se reconhece por esse sinal (a dor), e quando esse sinal lhe falta, o amor não passa de uma prostituição da força ou da beleza. Digo que alguém me ama quando esse alguém aceita sofrer por mim ou em meu lugar. Senão, esse alguém que pretende me amar não passa de um usurário sentimental que quer instalar seu vil negócio em meu coração”.

Se eu pudesse, falaria (em voz baixa, claro), à sua Santidade o papa Francisco: ‘Tu que desejas a fraternidade para o mundo, dá-nos o Cristo, porque sem Ele o que nos estás pedindo é impraticável. É só um moralismo a mais. Ninguém consegue ser fraterno por meio da simples boa vontade, muito menos por meio de decretos. Dá-nos o Cristo e viveremos a fraternidade que proclamas e almejas’.

 

Valdemar Munaro
é professor de Filosofia na UFN em Santa Maria/RS
26/11/2020

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