O PRIMEIRO MAÇOM DO MUNDO

José Maurício Guimarães.

Maçons que levam o simbolismo ao pé da letra, pouco versados na arte da simbologia, riem do Reverendo James Anderson (1680-1739) por causa da suposta frase: “Adão foi o primeiro maçom, iniciado por Deus no paraíso”.

Se lermos o texto original da Constituição de Anderson, publicada em 1723, veremos que o autor escreveu o seguinte:

“Adão, nosso primeiro Antepassado (first Parent), criado a partir da Imagem de Deus, o Grande Arquiteto do Universo, deve ter tido as Ciências Liberais, especialmente a Geometria, escritas em seu Coração (written on his Heart), pois mesmo depois da Queda encontramos os Princípios delas nos Corações de seus descendentes; e que no decorrer do tempo (in process of time) têm sido depurados em convenientes Métodos de Proposições mediante a observação das Lei das Proporções…”

Não podemos perder de vista que o escocês James Anderson era mestre em artes e doutor em teologia ? um Reverendo Pastor que em Londres foi Ministro das Igrejas Presbiterianas de Glass House Street e da Lisle Street Chapel até a data da sua morte. Quando ele redigiu a Constitution, o francês Jean Théophile Desaguliers colaborava com ele e certamente alguns textos foram compilados sob sua supervisão. Desaguliers era filho de um pastor huguenote (calvinista francês) refugiado na Inglaterra. Foi membro da Royal Society de Londres, assistente de Isaac Newton, professor de filosofia e inventor do planetário. Foi também o terceiro Grão-Mestre da Grand Lodge of England e um dos pais da moderna Maçonaria. Assim, a Grande Loja da Inglaterra teve por primeiros doutores e fundadores um escocês e um francês, nacionalidades rivais da Majestade Britânica.

Portanto, rir de Anderson é rir também do douto Desaguliers, um apanágio só dos que estão à altura dos graus acadêmicos que o Reverendo possuía e do prestígio da Royal Society. Infelizmente, no Brasil, a maçonaria vive de paradoxos e este é apenas um dos flagrantes desrespeitos para com a tradição e a inteligência: rir do que não se consegue compreender. Faço exceção ao douto José Castellani que elaborou refinado humor sobre o assunto (ver Almanaque Maçônico Engenho & Arte 2010 – www.artedaleitura.com.br); nesse caso plenamente justificável por se tratar de um requinte de expressão irônica voltada para aqueles que veem mistério em tudo.

Os estudos de simbolismo e o da simbologia parecem ser a mesma coisa. Mas são diferentes, tanto pelo objetivo quanto pelo método. Os expertos em simbolismo restringem-se à expressão e à interpretação dos símbolos. A simbologia, por seu turno, estuda esses mesmos fatos através da visão mais aprofundada do humanismo.

Partamos, então, do princípio (ou hipótese) de que as ordens iniciáticas têm por objetivo despertar o potencial interior do homem e auxiliá-lo na redescoberta de sua relação com o Cosmos.

“? Mas isso é esoterismo!” ? gritarão os afoitos.

SIM, meus caros watsons: é esoterismo SIM,? no bom sentido ? ou vocês já se esqueceram que esse “tal esoterismo” fazia parte do pensamento iluminista do século XVIII? “Grande Arquiteto do Universo”, por exemplo, é uma expressão trazida para a Maçonaria pelos místicos e esotéricos de influência pitagórica. E outros penduricalhos, como os “três pontinhos” depois das assinaturas, a “cadeia de união”, o uso de incensos, etc. Foi a partir da segunda metade do século passado (mais ou menos de 1950 para cá) que o esoterismo se misturou com mistificação, magia, feitiçaria e outras maluquices que prefiro chamar de “esquiso-téricas”.

Consideremos, portanto, ? e na mesma linha de pensamento das religiões e da moderna Psicologia ? que cada pessoa seja “portadora” de arquétipos (modelos inconscientes ou representações) que promovem (ou retardam) a evolução da consciência ? noutras palavras: consideremos que “num lugar escondido” da consciência existam modelos ou exemplares originais e transcendentes funcionando como leis escritas em nosso “Coração”. Pensem nisso e entenderão porque nada há de cômico ou risível na afirmação (simbólica) de Anderson. Pelo contrário: trágica seria a perspectiva de que o homem fosse um vazio destituído de qualquer base sobre a qual pudesse alicerçar o templo interior. É trágico, mas já se tornou realidade nos dias de hoje: a maçonaria praticada em nossas Lojas tem um viés predominantemente material: é cética e crua, o oposto do que se poderia esperar de homens convictos na existência de um Ser Supremo ou na preexistência da Alma (não estamos tratando de reencarnação, mas de “preexistência da Alma”).

As etapas para se alcançar o conhecimento partem daquilo que vem antes (“a priori”) e são, no caso da afirmação de Anderson, uma anterioridade sustentada nas noções de: 1) um Mestre Primordial (Deus ou a representação mental de Deus); 2) a transmissão de potencialidades básicas (iniciação); 3) um recipiendário (Adão ou, se preferirem, nossos primeiros pais ?first parent segundo Anderson); 4) uma escola (templum ? paraíso primordial) preparado para o remoto cerimonial (não estamos tratando da “iniciação” como ritual de admissão na Maçonaria, mas da “Iniciação da Alma”).

Quem estuda simbologia há de reconhecer na afirmação de Anderson esses quatro pontos necessários para a comunicação do pensamento abstrato sob forma figurada ? uma ciência livre (liberal science), em especial as justas e perfeitas proporções (Geometria), gravadas em seu íntimo (o “Coração”).

O Adão a que Anderson se refere é o admah hebraico ou “criatura feita da mãe-Terra”. O Deus Iniciador é o Inefável (que convencionamos chamar “Grande Arquiteto do Universo” por influência dos místicos pitagóricos, como já dissemos acima). A comunicação (iniciação no paraíso) deve ser compreendida mediante vários aspectos: no primeiro estágio da inteligência, o objeto comunicado passa pelas funções psíquicas da percepção e do julgamento: “vejo isso; isso é bom ou é mal” ? alegoria da árvore do conhecimento do bem e do mal. No segundo estágio ocorre a decomposição do objeto através da razão ? “o que é isso? como é isso?” No terceiro estágio acontece a transcendência pela contemplação e iluminação (plenitude) ? é o “daqui para onde”. A Maçonaria Real trabalha esses três estágios nos três graus do simbolismo: Aprendiz, Companheiro e Mestre. Se o maçom não consegue conceber o conhecimento primordial e a forma de transmissão é porque está APENAS formalmente iniciado, elevado ou exaltado como moeda sem lastro.

Convivemos com pessoas que, apesar de terem recebido dezenas de cerimônias formais, desconhecem a transmissão primordial.

Por causa disso, o formalismo e o ritualismo estão suplantando o conteúdo transcendente nas Ordens iniciáticas, na maçonaria principalmente ? como um todo ? e nas Lojas que a compõem.

Talvez esteja aí a origem de tantas dificuldades e conflitos que temos vivenciado.

 

 

Leituras que recomendo:
Anderson, James: As Constituições de Anderson, texto original, tradução de Valton Tempski-Silka, Juruá Editora, 2001 –  Jung, C.G.: “Fundamentos de Psicologia Analítica”, Vozes, 1989 –  Halevi, Shimon: “Cabala, a árvore da vida”, Editora Três, 1973 – Lorenz, F.V.: “A tradição esotérica do ocidente”, Pensamento, 1976 – Scholem, G.Gerson: “A Cabala e seu simbolismo”, Editora Perspectiva, 1978 – Evola, Julius: “A Tradição hermética” Edições 70, 1971.

Facebook Comments

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *